"O
canto da sereia"
Arnaldo
Boson Paes
Desembargador
do TRT/PI,
mestre e
doutor em Direito
Na
mitologia grega, as sereias eram seres demoníacos, capazes de atrair qualquer
um que ouvisse o seu canto. Os marinheiros, seduzidos por seu belíssimo som,
descuidavam da embarcação e naufragavam. Por isso, o ardiloso Ulisses, ao
regressar de Tróia, pediu para ser amarrado ao mastro de sua embarcação. Queria
ouvir o canto, mas sem correr o risco de se ver atraído por seu encanto.
O atual
canto da sereia, na versão brasileira, é representado pelo movimento em curso
para realização da “reforma trabalhista”. Com o pretexto de “modernizar” as
relações do trabalho, retomar o crescimento econômico e gerar novos empregos, o
governo patrocina a destruição de conquistas sociais dos trabalhadores. Apoiado
por sua base parlamentar, faz o jogo sujo do grande capital.
Por meio
do PLC nº 38/2017, aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal,
busca modificar mais de duzentas normas contidas na boa CLT (Consolidação das
Leis do Trabalho). A iniciativa é vendida como moderna, pois atenderia aos
interesses das partes, refletiria as necessidades da sociedade, ampliaria a
força do sindicato, aumentaria o número de postos de trabalho e seria boa para
a classe empresarial.
Um olhar
atento sobre o texto até aqui aprovado, porém, deixa claro que o discurso não
corresponde à realidade. A retórica da “modernização” oculta os reais objetivos
da “reforma”, que almeja na prática tornar precários os vínculos, ampliar as
jornadas de trabalho, reduzir os salários e até eliminar direitos históricos
dos trabalhadores.
Há na
“reforma” ampliação da terceirização, criação do trabalho intermitente,
banalização do trabalho autônomo, premiação como indenização, jornada de
trabalho de 12 horas e supressão do intervalo para descanso e alimentação. E
mais: trabalho de gestante em condições insalubres, eliminação de direitos
previstos em lei por meio da negociação coletiva e limitação de acesso à
Justiça do Trabalho.
Com
trabalho mais precário, jornadas maiores, menos direitos e menores salários,
isso tende a produzir queda da renda dos trabalhadores, gerar retração
econômica e provocar drástica redução do consumo. Ao invés de “modernizar” as
relações de trabalho e criar mais empregos, a “reforma” na prática provoca
precarização do trabalho, empobrecimento dos trabalhadores, desigualdade social
e reduz os empregos já existentes.
Necessário,
pois, desmistificar a falácia do discurso da “modernização”, que nada mais é do
que o novo canto da sereia. Para resistir a esse canto, é necessário ter a
consciência de que a “reforma” em curso corresponde a um projeto de país que
está andando para trás, retrocedendo-o à brutal exploração do trabalho humano
praticada no século XIX. É fundamental, então, esclarecer, acompanhar,
mobilizar e reagir, somando forças para impedir o retrocesso das conquistas
sociais.
Como a
lei não contém todo o Direito, a aprovação de ontem da "reforma
trabalhista" pelo Congresso Nacional não significa que tudo estará perdido.
Sempre haverá espaço para dar sentido às palavras desconexas, ambíguas e
contraditórias usadas pela lei. Por meio do amplo diálogo social, será possível
reconstruir os seus sentidos, adequando seu texto ao seu contexto.
Convém
aqui lembrar a lição de Ruy Barbosa, para quem a "esperança nos juízes é a
última esperança", na medida em que, nas mãos de bons juízes, até as leis
ruins se tornam boas. Como há no Brasil
bons juízes do trabalho, fica a esperança de que, por meio da interpretação,
serão corrigidos os desacertos da lei, ajustando-a ao valor social do trabalho
e ao princípio da dignidade do trabalhador.
* Arnaldo
Boson Paes - Desembargador do TRT/PI, mestre e doutor em Direito