A partir de hoje, toda quinta-feira, neste BLOG , serão publicadas crônicas escritas pela inspiração e dedicação do Juiz Márcio Roberto Andrade Brito sobre a itinerância no Tocantins.
O Juiz Márcio Roberto, ingressou na carreira da magistratura trabalhista ainda muito jovem, apenas 24 anos. Logo, aquele menino, que muitos não acreditavam ser juiz, mostrou a sua maturidade e vocação. Para além dos textos jurídicos, o juiz revelou sua intimidade e seu talento para com a escrita. Nas crônicas que serão publicadas, o juiz retrata com simplicidade, mas com riqueza de detalhes, o cotidiano da vida e os momentos que a magistratura no interior lhe proporcionara.
Quer saber qual é a diferença de ser juiz no interior?
Narrativas de um juízo itinerante
Por MÁRCIO ROBERTO ANDRADE BRITO
Juiz Titular da Vara do Trabalho de Dianópolis-TO
A verdade das linhas que te convido a ler não é oficial; tampouco tenho a pretensão de torná-las verdadeiramente verdadeiras; são instantes que a memória registrou das experiências que eu vivenciei – e que ainda vivencio – da justiça itinerante no interior do Tocantins; ao relatá-las, conto uma versão carregada do romantismo com que enxergo a vida e exponho emoções do juiz homem e não do Estado-Juiz; exercitar estas lembranças me ajuda na compreensão da realidade que me persegue e da qual não quero e nem devo fugir; se esta visão te iluminar a lançar um olhar sobre um mundo que não é teu, terei cumprido o papel a que me propus; um pouco do fecundo arsenal de variantes que permeiam a atividade jurisdicional está ludicamente narrado nos textos que se seguem, escritos num português em minúsculas e sem ponto final, tal qual a itinerância; os fatos não estão em ordem cronológica e muitos deles são fragmentos de acontecimentos ocorridos nas inúmeras viagens; são, na verdade, mantras, cantigas que muito comumente repetimos sem perceber a essência; boa reza!
CHECK LIST
primeiro dia de itinerante; a ansiedade era geral; eu confesso que de tantas recomendações, deixei a equipe tensa; “não se esqueçam de nada”; “sim, doutor, já conferimos o material e está tudo no carro”; computador, impressora, processos, papel, caneta, pauta, uma CLT, uma Constituição, um CPC, a toga, a urna da ouvidoria, cartão corporativo para abastecimento do veículo oficial e uma faixa com os dizeres Justiça do Trabalho Itinerante; a cada viagem acrescentaríamos um item em nosso check list; sempre descobriríamos uma nova necessidade; tudo parecia caminhar tranquilamente; um ou outro detalhe não previsto, mas nada que nos tirasse da rotina planejada; lá pelas tantas, ao final de uma audiência, a testemunha é chamada para assinar o depoimento e o advogado informa que ela é analfabeta; pediu uma almofada de carimbo para lançar a digital da testemunha na ata; olhei pro secretário de audiências e perguntei pelo objeto solicitado; “não trouxemos doutor”; “então pede uma almofada emprestada ao cartório do foro”; passava do meio-dia; eles fecham tudo pro almoço; descobrimos que estávamos sozinhos dentro do prédio; as demais salas, todas fechadas; a testemunha e o advogado aguardavam uma solução; dirigi-me ao advogado; “não precisa lançar a digital da testemunha doutor, afinal tenho fé pública”; fizemos uma pequena anotação no corpo da ata e tudo resolvido; quando todos saíram da sala, olhei pro diretor de secretaria; “incluam esta bendita almofada no nosso check list”;
estudávamos a expansão da justiça itinerante em novos municípios; além dos contatos com os advogados da região, era preciso esclarecer a população sobre a importância deste novo serviço público; conversei com uma amiga jornalista e ela se dispôs a ajudar; gravou sem nenhum custo um spot para veiculação nas rádios comunitárias; ficou bonito; tinha até um fundo musical fazendo referência ao refrão de trabalhador, trilha sonora de Seu Jorge; quando cheguei na cidade, parei numa farmácia para comprar algo e, enquanto pagava, ouvia um carro de som passando em frente com o spot; a música era estridente; empolgante; parecia anúncio de um show; olhei para o diretor de secretaria, que começou a sorrir; o atendente olhou pra mim e perguntou: “vocês são o pessoal da justiça do trabalho?”; “sim, somos nós”; “ah, eu tenho um problema que nunca resolvi, como faço?”; “vai lá que o pessoal está disponível para tirar suas dúvidas”; e chegou dúvida de todo gênero; casamento; segunda via de carteira de identidade; saque de FGTS; despejo; aposentadoria; pensão alimentícia; reconhecimento de paternidade; reclamações sobre transporte público e sistema de saúde; descobri que a desinformação sobre direitos é uma realidade ainda muito distante de solução; descobri mais ainda que a nossa missão ali é bem ampla; levar justiça e cidadania ao povo, ao povão; retornei para Dianópolis admirando as belas paisagens, refletindo sobre o que eu estava fazendo ali; ouvi atentamente Seu Jorge: e sem dinheiro vai dar um jeito, vai pro serviço, é compromisso, vai ter problema se ele faltar, salário é pouco, não dá pra nada, desempregado também não dá, e desse jeito a vida segue sem melhorar, trabalhador, trabalhador brasileiro; complemento: a justiça na estrada; vida que segue; a melhorar;
CAFÉ DA MANHÃ
O hotel de Taguatinga é um grande corredor com 18 aposentos; piso de cimento queimado; portas de alumínio; ouvimos tudo o que se passa nos quartos vizinhos; sabem até a hora que o juiz apaga a luz ou desliga a TV; privacidade zero; hora do café da manhã; a equipe já acordou mais cedo e foi preparar a sala no foro onde serão realizadas as audiências; neste intervalo, tomo café-da-manhã numa das quatro mesas do refeitório; tudo lotado; é necessário compartilhar a mesma mesa com outros hóspedes; uns puxam conversa; prefiro dizer apenas um “bom dia”; quem está de terno provavelmente é advogado; outros podem ser litigantes; não posso demonstrar uma intimidade que não existe; minha imparcialidade poderia ser injustamente questionada por quem assistisse à cena; a equipe chega para me buscar; já no estacionamento, todos os que estavam no refeitório entram em seus veículos e fazem o mesmo percurso em direção ao foro; um comboio de “reclamados” e “advogados”; sentaríamos novamente à mesma mesa, agora da sala de audiência, já constrangidos a ultrapassar aquele “bom dia” matinal para então discutirmos as causas postas a julgamento; a partir da viagem seguinte, quando chego ao hotel, já sou cumprimentado pelos hóspedes que agora me conhecem; “olá doutor, fez boa viagem?”; ali convivemos muito de perto com o nosso público; compartilhamos os mesmos obstáculos; dividimos o mesmo espaço; aprendi naquela experiência que juiz e sociedade são entes verdadeiramente indissociáveis;
PLANEJAR
época de chuva é um calvário; estradas deterioradas; buracos; animais na pista; falta de visibilidade; névoa; e água, muita água; o caminho se torna mais longo; troca de pneus; pane no veículo; o risco de atrasos torna-se maior; o medo de não chegar a tempo vai atormentando juiz e servidores durante o percurso; não podemos falhar com quem está aguardando ansiosamente pela solução de seu problema; a angústia não pode, entretanto, suplantar a necessidade de segurança da equipe; temos que dirigir com cautela; percebi que é preciso planejar melhor o roteiro; prever os infortúnios; pegar estrada à noite por estas regiões é uma insanidade; resolvi que um expediente (manhã ou tarde) deve ser inteiramente destinado ao deslocamento, independentemente da distância a ser percorrida (100 km, 200 km, 300 km, etc.); e de que devemos estar com antecedência razoável nos locais de audiência, nem que para isso seja necessário pernoitar no município de destino; planejar, palavra cujo verdadeiro significado nós aprendemos nestas idas;
LOUCOS DE TODO GÊNERO
desenho de Ailly |
certo dia adentrou na sala de audiência um reclamante que demonstrava absoluta dificuldade para se comunicar; apresentava sinais claros de confusão mental; sua reclamação trabalhista havia sido reduzida a termo pela secretaria da vara (atermação); os servidores já alertaram ao juiz de que o reclamante transparecia não estar em pleno gozo de suas faculdades mentais; o diálogo em audiência foi muito difícil; o ex-empregador não demonstrava nenhuma surpresa; ao contrário, sorria a cada palavra do reclamante, mas não em tom de deboche; olhava para o juiz como querendo dizer que o reclamante era “daquele jeito mesmo”; a cidade o conhecia assim; na narrativa dos fatos, o reclamante havia se comprometido a realizar alguns serviços na fazenda do reclamado por empreitada e agora cobrava valores que o reclamado sustentava ter pagado; a indignação do reclamante residia no fato de acreditar que seu trabalho valia mais do que o acertado, do que o combinado, do que o pago; estava nítido que ele recebera o valor prometido; mesmo assim o reclamado propôs pagar R$ 300,00 para encerrar o processo; não houve acordo; marcamos audiência de instrução; e convoquei o MPT (Ministério Público do Trabalho); a audiência itinerante foi inusitada; por mais que a procuradora do trabalho tentasse convencer o reclamante de que deveria receber o valor proposto, pois a obrigação do empregador já havia sido totalmente cumprida, o reclamante não aceitava; dizia em alto e bom som que a procuradora e o juiz tinham sido “comprados” pelo outro lado; perguntava com ingenuidade e uma sinceridade dilacerante à procuradora se ela estava ali para defender ele ou o reclamado; a situação era constrangedora e ao mesmo tempo hilária; a audiência estava sendo filmada pela TV Justiça que realizava um documentário sobre justiça itinerante no Tocantins; não havia nenhum indício de afronta à autoridade, apenas uma ignorância velada pela notória confusão mental do reclamante que não possuía nenhum familiar vivo para lhe orientar; vivia na cidade à própria sorte; seria uma crueldade propor a sua interdição; privaríamos o ser de viver seu estado de loucura com liberdade? não aceitou o acordo e o processo foi julgado improcedente; a cena fez brotar em mim uma profunda reflexão sobre o ato de decidir; a função do Estado; as imagens construídas pelo senso comum sobre corrupção no sistema judiciário; a problemática educacional no interior do país; o tratamento do Estado frente à saúde mental da população; e uma única certeza: há loucos de todo gênero;
em Natividade, havia um temido proprietário de oficina mecânica; conhecido nas redondezas por tratar seus empregados com excessivo rigor; aqui as notícias correm; é inevitável tomar conhecimento desses boatos; tem que estar preparado para ouvir e filtrar ou esquecer (se é que isso é possível); recebemos uma reclamação trabalhista e agendamos audiência para a viagem seguinte; neste intervalo, a oficiala de justiça tentou por diversas vezes notificar o tal dono da mecânica, mas ele ofereceu resistência das mais diversas formas; numa delas, curiosa por sinal, pulou o muro e saiu correndo para não receber o mandado; a oficiala era muito firme, como tem que ser quem exerce este ofício; o trabalho dela me impressionava; ela agia igual um detetive; não sossegava enquanto não cumpria a ordem; nunca recebi uma certidão negativa dela; hoje ela está em Brasília; é uma excelente profissional; mas voltando ao assunto; ela conseguiu cumprir o mandado, embora o dono da mecânica tenha esbravejado de que não tinha juiz neste mundo que fizesse ele pagar direitos àquele trabalhador (aqui omito o palavrão que ele soltou na ocasião, mas que fazia referência à mãe do infeliz); foram três audiências neste processo; encontros difíceis; nenhum dos lados estava assistido por advogado; o dono da mecânica se apresentou com uma educação ímpar; dirigia-se a mim com um português polido; tratava-me como manda o figurino; “excelência”; “meritíssimo”; o trabalhador ficava com a cabeça baixa e às vezes esboçava um sorriso irônico em direção ao desafeto; num dado momento, o trabalhador olhou para mim e disse: “dotô, esse moço falou que num tem juiz nesse mundo que faça ele me pagar”; a informação realmente batia com as dificuldades da oficiala de justiça; olhei para o reclamante e respondi; “não meu caro senhor, com certeza ela não diria uma coisa dessas; ele me parece ser uma pessoa muito esclarecida, não é mesmo seu fulano? ele sabe que se for reconhecido que ele deve, ele pagará”; o reclamado exclamou, “sim, excelência, quem sou eu para descumprir uma ordem da justiça”; ouvimos as testemunhas dos dois lados; proferi a sentença; resultado procedente em parte; pelo meu julgamento, ninguém estava totalmente certo e ninguém estava totalmente errado; aquela tentativa salomônica de dividir o perseguido ideal do justo; mas ele pagou o que devia; do lado de fora do foro, todos aguardavam a saída do juiz; nesta hora temos que ser bem cautelosos; não há muita segurança na região; não há reforço policial suficiente; mas, para minha surpresa, todos queriam era apertar a mão do juiz e falar alguma coisa; contar histórias; convidar para um almoço; eu declinava os convites com um sorriso estampado no rosto, mas ouvia tudo o que falavam com atenção; isso já era suficiente para deixá-los satisfeitos; criou-se um ritual; todas as vezes que faço audiência em Natividade, fica uma romaria na frente do foro para conversar comigo; nessa hora fico sem saber o que sou realmente; juiz? padre? pastor? pai de santo? vidente? recordava-me então das lições de um desembargador aposentado que sempre me alertou: “a magistratura é um ato de amor”; e não é que ali isso fazia todo o sentido?
A MALA
audiência com o MPT (Ministério Público do Trabalho); ação civil pública complicada; um grupo econômico que demitiu 150 trabalhadores; poderíamos resolver o pagamento de dezenas de processos em execução que dormiam no arquivo provisório; a procuradora do trabalho chegou ao foro sem tempo de passar no hotel para deixar a bagagem; pedimos ao assistente do juiz local que guardasse a mala da procuradora numa sala vizinha; realizamos a audiência, que terminou após o meio-dia; novamente o problema do horário de almoço; a sala estava trancada e dentro dela a mala da procuradora; teríamos que aguardar até as 14h; o veículo oficial do MPT estava numa cidade vizinha; eu já estava pensando em almoçar no caminho para a próxima cidade; pretendia fazer uma parada no Rio dos Azuis para comer uma comida mais decente; uma galinha caipira que só de pensar já me dava água na boca; não poderia, entretanto, deixar a procuradora ali, sem sua bagagem, sem seu motorista, sozinha numa cidade que era novidade para ela; também não seria possível irmos todos ao Rio dos Azuis para retornar em seguida; o tempo não permitiria; numa situação normal, eu já levava umas barrinhas de cereal para aguentar até o momento da galinha caipira, pois o restaurante de Taguatinga é muito ruim; vi o sonho de o almoço decente descer ladeira abaixo; fomos então almoçar no pé sujo da cidade; lá estavam todos os trabalhadores que haviam participado da audiência; uma felicidade sem igual; iriam eles em breve receber o crédito que tanto aguardavam; o MPT havia conseguido arrancar um acordo excelente para a solução das demandas; quando entramos no restaurante, os olhares todos se voltaram para a gente; novamente eu bem perto daqueles cidadãos que não passam de mais um número nos milhares de processos que já apreciei na vida; a galinha caipira ficaria para a próxima; bendita a mala que me fez comer a mesma comida dos trabalhadores rurais da região e sentir, nem que fosse de relance, um pouco do seu dia-a-dia; juiz do interior é juiz provocado a conhecer o seu interior; eu estava mais completo do que outrora; acredito que a procuradora do trabalho também;
FALTOU LUZ
outro dia fazíamos audiência num salão do júri no município de Taguatinga; faltou energia; mandei que abrissem as janelas; dei prosseguimento à audiência assim mesmo; sem o refrigério do ar condicionado; no calor de 40 graus; o computador portátil continuou funcionando à bateria; terminada a audiência, não pude imprimir a ata; ficou gravada na memória do computador para ser impressa e assinada no dia seguinte, já em Dianópolis, sede da jurisdição; todos saíram da audiência sem nenhum registro escrito; não havia um rumor sequer sobre o fato; nos tempos da máquina de escrever o desfecho seria diferente; a inovação tecnológica trazia naquele momento uma nítida demonstração de dependência; mesmo assim, percebi pelo comportamento dos advogados e litigantes – serenos – de que ainda há grande confiança no Judiciário pelo interior do Brasil afora;
ESCOLA
Paranã é um município pobre, carente de uma via completamente asfaltada; em época de chuva o nosso veículo sofre com as estradas de barro; anunciei previamente o horário de chegada; às 10h estavam todos os advogados da região na porta do foro para me receber na saída do veículo; um lanche de boas vindas me aguardava; conversei com o juiz de direito e ele se mostrou muito empolgado com a nossa atividade; ofereceu o salão do júri para as audiências; era um prédio novo, inaugurado recentemente; salão bonito, moderno; o problema era a platéia; muita gente quer assistir esses eventos; tive que me acostumar aos poucos com a situação; cada palavra que pronunciava era atentamente ouvida por todos; o que um juiz fala no interior é lei; temos que medir as palavras; elas reverberam; terminadas as audiências, uma senhora pedia para falar comigo; era a diretora da escola municipal; a gente acaba dando consulta sobre vários tipos de queixas e problemas; queria que eu conhecesse a escola e as dificuldades por eles enfrentadas; naquele instante, lembrei-me de minha mãe, que é professora e diretora de uma escola municipal em João Pessoa; cresci ouvindo seu discurso sobre educação; colocamos nosso material no carro e fomos à escola; realmente as condições são péssimas; salas quentes; excesso de alunos em cômodos mínimos; mobília imprestável; improvisações na rede elétrica; caminhei de terno no horário do intervalo e os olhares dos alunos eram de surpresa; “mas quem é este homem?”; entrei em algumas salas a convite de um professor; conversei com os alunos; tirei algumas fotos; um dos alunos pediu para tirar uma foto comigo; aceitei na hora e perguntei se ele estava estudando direito, cumprindo as tarefas; a turma inteira caiu na gargalhada; eu perguntei porque riam; ele me olhou; “sei lá doutor”; a diretora contou-me em seguida, ao sair da sala, que ele era a pedra no sapato dela; o aluno problema; prometi retornar para proferir palestras sobre direitos fundamentais; levei um ofício ao TRT solicitando doação de mobília usada; a itinerante é realmente uma escola;
SOB O SOL ESCALDANTE
pauta de audiências marcada para as 8h em Arraias; dormimos numa cidade vizinha, Campos Belos, a 23 km; às 7h30, chegamos ao foro da justiça eleitoral; tudo fechado; o sol já estava castigando; ficamos alguns minutos incrédulos em frente ao prédio; desço do carro e vejo litigantes e advogados me aguardando; a chefa do cartório está em férias; o horário de abertura do foro é às 8h30, informou-me um dos advogados; o diretor de secretaria fica aflito; “mas doutor, e o convênio entre o TRT e o TJ? eles têm que abrir o foro no horário das nossas audiências”; não é bem assim; o convênio existe para facilitar a atividade da justiça itinerante, é bem verdade; mas nós, que estamos na linha de frente, temos que facilitar a adaptação do convênio à realidade; já deixo claro que a próxima pauta deve ser marcada a partir das 9h; mas precisamos resolver o problema do dia; conversei com os advogados e combinamos de aguardar a abertura do foro; não havia uma árvore para nos dar sombra naquele sol escaldante; pensei em entrar no carro e ligar o ar condicionado; mas olhava para os trabalhadores sentados na calçada e aquilo me constrangia; fiquei lá, sob sol escaldante; o suor pingava do corpo e a camisa já estava toda molhada por debaixo do paletó; às 8h30 chegou o funcionário do cartório; tranquilamente abriu a porta e entramos para rapidamente organizar o material das audiências; mais um item para o nosso planejamento; pensei bastante e cheguei à conclusão de que é mais fácil nos adaptarmos aos costumes locais do que impormos uma rotina que nos parecesse mais lógica; as audiências em Arraias teriam que começar um pouco mais tarde do que o habitual; e assim foi; ao retornarmos para Campos Belos, a ponte que cobria um córrego havia desabado; ficamos na estrada algumas horas e resolvemos mudar a rota por outro destino, sob pena de não chegarmos a tempo no próximo destino; 200 km foram acrescentados ao percurso; a experiência anterior sobre o planejamento destes deslocamentos nos ajudou a enfrentar o infortúnio sem angústia; foram muitas as lições deste dia;
TIA NANINHA
cheguei em Natividade; cidade histórica, a mais antiga do Tocantins; um belo casario restaurado com recursos do governo federal; uma igreja em ruínas construída por escravos; lugar encantador; no passado, a exploração do ouro trouxe riqueza (aos exploradores, é claro); durante as audiências, todos falavam orgulhosos das maravilhas de Natividade; convidavam-me a conhecer os costumes locais; aceitei o convite; fui à casa de Tia Naninha; uma senhora conhecida por seus biscoitos caseiros; assustei-me com a casa de portas abertas; bati palmas e gritei seu nome bem alto na entrada; uma voz surgiu rompendo o silêncio; “pode entrar”; passei por todos os cômodos com a minha equipe sem encontrar uma alma viva; cheguei ao quintal e me deparei com uma grande fornalha e várias pessoas sentadas fazendo o tal biscoito amor perfeito; Tia Naninha me indicou uma cadeira e me serviu um café; ouvi suas histórias e me deliciei nos biscoitos; amor perfeito era uma homenagem ao seu casamento, amor que segundo ela é teria contribuído para uma família feliz, perfeita; comprei vários biscoitos e comecei a colocá-los na mesa de audiência para adoçar os ânimos dos litigantes e advogados; começava a audiência conversando com todos como era gostoso o amor perfeito; patrões e trabalhadores gostavam daquilo; as audiências se transformaram numa grande conversa; numa troca de experiências; algumas terminavam e acordo e cafezinho com biscoito; outras em sentenças, muitas vezes duras, longe da perfeição do biscoito que se desmancha na boca; mas uma nova certeza me foi apresentada: a sala de audiências pode ser austera e agradável; alguém duvida?
"Salve os povos indígenas dos acroás, xacriabás, xavantes, caiapós e javaés
Salve os bandeirantes europeus, aventureiros e missionários jesuítas
Salve a fazenda brejo, o povoado de santa maria, a terra das palmeiras
Salve Taguatinga e sua história que hoje honradamente passa a ser também minha
Ta'wa, tinga, ave branca, barro branco, és terra, és ar, de todos nós
Caros taguatinguenses, agora vos fala mais que um servo
Um filho por adoção, do maior próprio do amor
Expresso aqui, emocionado, gratidão
Minhas amigas, meus amigos
O presente que hoje me concedem não tem preço
Assinaste, Taguatinga, meu humilde nome entre os filhos desta terra
Fizeste de mim mais um arauto das tuas belezas, meu agradecimento eterno
Na casa da cidadania, reuniste ilustres cidadãos
Rendo profunda homenagem, na esperança de juntos plantarmos a semente da tão sonhada justiça
A justiça social
Não darei nenhum nome a vocês
Cometeria injustamente omissão que a memória traidora não perdoaria
Prometo honrar tua bandeira e te dedicar lealdade
Magistrado intinerante, aqui dei os primeiros passos de uma justiça cigana
Que pousa nesta terra tal qual um beija-flor
Deixo hoje de ser forasteiro e me torno cidadão
De mãos dadas com o legislativo, o executivo e o judiciário
Pilares da democracia brasileira
Peço que este momento seja sinônimo de celebração, do Divino, das cavalhadas
Que a supremacia do universo ilumine este aprendiz que vos fala
E traga prudência e compreensão
Credito esta homenagem ao tribunal que me confiou a missão difícil
Porém recompensadora de mostrar os caminhos da democracia social a um povo ainda sofrido
Obrigado ao TRT da 10ª Região, aos Amigos da 25
No sonho de ver nascer em terras tocantinenses
Um futuro que ajudei a construir
Obrigado representantes eleitos deste município
Obrigado advogados, obrigado serventurários da justiça local
Inesquecível e inestimável acolhida
Como disse o poeta paraibano: "na volta ninguém se perde"
Hoje acrescento: aqui eu me encontrei
Um abraço do teu novo cidadão
Márcio de João Pessoa, Márcio de Brasília, Márcio de Dianópolis
Márcio de Taguatinga"
Márcio Brito
Salve os bandeirantes europeus, aventureiros e missionários jesuítas
Salve a fazenda brejo, o povoado de santa maria, a terra das palmeiras
Salve Taguatinga e sua história que hoje honradamente passa a ser também minha
Ta'wa, tinga, ave branca, barro branco, és terra, és ar, de todos nós
Caros taguatinguenses, agora vos fala mais que um servo
Um filho por adoção, do maior próprio do amor
Expresso aqui, emocionado, gratidão
Minhas amigas, meus amigos
O presente que hoje me concedem não tem preço
Assinaste, Taguatinga, meu humilde nome entre os filhos desta terra
Fizeste de mim mais um arauto das tuas belezas, meu agradecimento eterno
Na casa da cidadania, reuniste ilustres cidadãos
Rendo profunda homenagem, na esperança de juntos plantarmos a semente da tão sonhada justiça
A justiça social
Não darei nenhum nome a vocês
Cometeria injustamente omissão que a memória traidora não perdoaria
Prometo honrar tua bandeira e te dedicar lealdade
Magistrado intinerante, aqui dei os primeiros passos de uma justiça cigana
Que pousa nesta terra tal qual um beija-flor
Deixo hoje de ser forasteiro e me torno cidadão
De mãos dadas com o legislativo, o executivo e o judiciário
Pilares da democracia brasileira
Peço que este momento seja sinônimo de celebração, do Divino, das cavalhadas
Que a supremacia do universo ilumine este aprendiz que vos fala
E traga prudência e compreensão
Credito esta homenagem ao tribunal que me confiou a missão difícil
Porém recompensadora de mostrar os caminhos da democracia social a um povo ainda sofrido
Obrigado ao TRT da 10ª Região, aos Amigos da 25
No sonho de ver nascer em terras tocantinenses
Um futuro que ajudei a construir
Obrigado representantes eleitos deste município
Obrigado advogados, obrigado serventurários da justiça local
Inesquecível e inestimável acolhida
Como disse o poeta paraibano: "na volta ninguém se perde"
Hoje acrescento: aqui eu me encontrei
Um abraço do teu novo cidadão
Márcio de João Pessoa, Márcio de Brasília, Márcio de Dianópolis
Márcio de Taguatinga"
Márcio Brito
Por vezes, sou tomado de assalto por uma vontade desvairada (desprovida de fundamentos racionais, conscientes ou não) de escrever. Só sei que quero, ou melhor, preciso. Ansiar em escrever algo que não se sabe é esquisito. Acredite. E muito, por sinal. O fato é não há pauta para as próximas linhas, apenas o desejo em fazê-las. Não há razão para o irracional, mas para os sedentos de sentido e explicações, quaisquer que sejam, escutem: imaginem um adolescente, menino moço, desejando uma mulher. E encontra Sophia Loren e Brigitte Bardo no alto de seus encantos! Qual das duas? Tenham certeza que não haveria explicações, lógicas ou não, pela escolha de uma ou outra, pois para a satisfação de tal peripécia juvenil apenas uma única condição sine qua non far-se-ia presente: ser da espécie homo sapiens, gênero XX. Sophie ou Brigitte? Poderia ser qualquer uma. Simples assim. Sem maiores explicações, como a minha aspiração de parir letras agora. Devo admitir que o exemplo talvez não represente um bom paralelo, mas eis que emerge algo de valor para ser trazido à baila. Singular a todos os seres humanos: o dia. Sim, o dia. O dia? Mas, o que é um dia? São várias definições, diversas variáveis envolvidas e perspectivas oriundas de grandes ramos de tudo quanto é área do conhecimento humano. Enfim... Em síntese, a definição mais arraigada no inconsciente coletivo é a unidade de medida de tempo, equivalente a um período de aproximadamente vinte e quatro horas. Inquestionável sua importância, mas limitada para o que se tratar neste curto devaneio. Aqui, o dia será considerado como o intervalo de tempo existente desde o despertar até o adormecer. Assim, os dias ficam tornam-se mais “humanizados” pois têm o célebre livre arbítrio. Podem durar 72 horas ou apenas 30 minutos. E nesse intervalo temos simplesmente todas as possibilidades a nossa frente. O despertar é o nascer, não do dia, mas do ser humano desperto, e adormecer seria sua morte, deitado em algum lugar, sonhando... Nascer e morrer, todo dia. Fascinante. Quantas vidas já vivestes? Qual vida sua foi marcante? O fato é que tal conceito pode ser um grande infortúnio. Acarreta um encargo enorme. Imaginem: “vou morrer daqui a 30 minutos e não fiz isso!”. Ou: “perdi 1 hora com uma discussão inócua”, ou seja, perdi parte dessa “vida” com algo irrelevante. Assim, é bem melhor ficar com o primeiro conceito sobre o dia porque se tem a falsa sensação da eternidade. Como o indivíduo não sabe que dia morrerá, tem todos os dias do mundo para viver. E assim sendo, os dias vão simplesmente passando. Passando. Mais um. Passando. Mais um... Dia após dia, como uma goteira chata e incômoda da pia na cozinha. “Sou eterno”, bem mais sedutor. Já disse um poeta “temos todo o tempo do mundo”. Mas que tempo é esse? Para a maioria, são muitos os dias. E aquilo que se tem em grande quantidade pouco valor tem sua fração. É como se os dias fossem um monte de cascalho. Há de se convir que pouca diferença faz um cascalhinho a mais ou a menos, se joguei fora um cascalho, se esqueci outro na gaveta. “Tenho muitos!” E assim, jogam-se fora muitos dias, pouco a pouco, na magnitude de suas irrelevâncias. Prefiro o outro conceito. Arquitetem, uma vida a cada dia. Um dia, uma vida. Isso é um diamante. Ter várias vidas... A alquimia maior do ser humano. Cada dia sendo um diamante, únicos em sua estrutura. Preciosos. E seguir a estrada com diamantes deve ser bem mais interessante do que com um amontoado de cascalho...
Rivadávio Amorim
Foto: Rosarita Caron |
Visto que o mundo não acabou (pelo menos por enquanto) e que cá ainda estamos, a estrada segue... Natal. Dia de presentes. Ao ensejo, trouxe-te um, personalizado. Inédito. Confesso nunca ter cogitado em presentear alguém com isso. Sou neófito nesse campo, posso assim dizer. Antes tarde do que nunca. Perpassei muitos encontros e desencontros para perceber um dos mais preciosos combustíveis da vida humana. Esperança. É isso. Sem ela, não há nada por fazer. E venho lhe dar esperança engarrafada nessas palavras que se juntam e ora decifras. Agora tenho a mala cheia dela, da mais piegas a mais requintada. Esperança se veste em qualquer lugar, a qualquer hora, a quem quer seja. Recebe-a. Toma um gole. Esperança que as dores de cabeça vão passar. Esperança dos filhos melhor, a cada dia. Esperança de sonhar voando. Esperança do prato com mais comida. Esperança de que o fio dental está no porta-luvas. Esperança do vento no fim da tarde para levantar a pipa. Esperança de não faltar amor, nunca. Esperança que dessa vez vai ser diferente. Por que é possível, por ser simples. Basta ter um pouquinho, uma pitada apenas. Um suspiro de esperança. Toma, é sua. Feliz natal!
HOJE O DIA ME ACORDOU
Hoje o dia me acordou oferecendo água. Aos montes, caindo do céu, teria água para matar toda a sede, nadar até quando minhas braçadas alcançassem, semear vida. Assim, diante de tamanha delicadeza, permiti-me encher um mar. Meu mar. E lembrei imediatamente do encanto vivido quando no meu colo seu rosto sentia conforto pela primeira vez. Minhas mãos abraçavam teus cabelos. Não caia uma gota d’água sequer, mas em um piscar de olhos surgia também um mar diante de nós. Mar que nem meus melhores sonhos poderiam esboçar. Projetei-me em carne e osso ao local onde tudo começou. Revi nosso mar. Molhei os pés. Na verdade, queria lavar a alma naquela água que já envolveu sentimentos preciosos e precisos ao mesmo tempo. Reconheci alguns, ainda misturados à água. Você definiu bem: éramos dois estranhos. E eu completei “mas como se fossemos velhos conhecidos”. Sem culpa, sem freios. Sem medo. Desejei que o mar pudesse trazer de volta aquele momento mágico, como as ondas devolvem a praia o que se perdeu depois de uma ressaca. Na linha dos olhos uma jangada. Imaginei nela o futuro. À deriva, à espera de um sopro de vento para nortear o caminho. Uma brisa me bastaria. Invejei a persistência das ondas que nunca desistem de chegar à margem. Incansáveis. Antes de voltar, recolhi um pouquinho de esperança travestida em água de um mar que se foi. Nosso mar. Amanhã o dia me espera. Também espero por ele. Sou um eterno nadador...”
Rivadávio Amorim.de