O STF e o mundo do trabalho: reescrevendo a
Constituição
Entre 2016 e 2018, Supremo foi o tribunal do
mercado
Cristiano Paixão |
Ricardo Machado Lourenço |
Foto: Gil Ferreira/SCO/STF |
Estamos próximos da data de
aniversário dos 30 anos da Constituição. Como
sempre ocorre nessas ocasiões, serão produzidas matérias em órgãos da imprensa
escrita, reportagens especiais em telejornais e textos em veículos
especializados. Será interessante observar se um aspecto será ressaltado: a
centralidade dos direitos sociais e do mundo do trabalho na elaboração da
Constituição. Não é apenas um interesse acadêmico. O sistema de proteção do
trabalho humano está sendo inteiramente reescrito nos últimos dois anos. E o
autor dessa narrativa é o Supremo Tribunal Federal. Por esse novo enredo, o
trabalhador não é o protagonista do mundo do trabalho.
Alguns poderiam dizer que se
trata de uma consequência da reforma trabalhista. Ocorre, contudo, que dois dos
três casos que apresentamos abaixo sequer são regidos pela Lei nº 13.467/2017.
Apenas o terceiro, com julgamento ainda inconcluso, diz respeito à reforma.
Isso quer dizer que, mesmo antes do Parlamento, o STF se encarregou de
modificar o elenco do mundo do trabalho no Brasil.
Como
essa mudança ocorreu?
Uma decisão que revela com todas
as suas tintas a postura do STF em defesa do mercado envolve o tema da
terceirização.
Ao concluir o julgamento da ADPF
324 e do RE 958.252-MG, no último dia 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal
firmou, com repercussão geral, a tese de que “é licita a terceirização ou
qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas,
independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a
responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. O resultado é a
permissão, sem restrições, à utilização da terceirização de serviços como
dinâmica empresarial, inclusive com relação às atividades fim do
empreendimento.
Para o Supremo Tribunal Federal, o
trabalhador e os direitos trabalhistas surgem como entraves ao desenvolvimento
econômico, ameaçando o conjunto da sociedade.
A ameaça se volta, inclusive, ao
próprio trabalhador, pois a restrição à terceirização teria por consequência a
redução de empregos. E o empresário, segundo a Corte, é livre para usar a força
de trabalho e contratá-la como bem entender.
A consequência é a redução do
trabalho e da pessoa do trabalhador a uma mera mercadoria, a ser consumida de
acordo com as necessidades econômicas do empresário (“empreendedor”) e em
proveito útil à sociedade como um todo. Os desdobramentos nocivos dessa decisão
já foram ressaltados em artigos publicados no JOTA por Gabriela Delgado e
Renata Dutra e também por Paulo Joarês Vieira e Rodrigo Carelli.
A decisão proferida na ADPF 324 e
no RE 958.252 é, no entanto, coerente com outros posicionamentos adotados pelo
Supremo Tribunal Federal.
No dia 27 de outubro de 2016, no
julgamento do RE 693.456-RJ, o STF deliberou, também com repercussão geral, que
o administrador público tem o dever, e não mera faculdade, de cortar o ponto de
servidores grevistas. Um dos fundamentos da decisão foi o de que, na
administração pública, vigora o princípio do interesse público. Para a Corte,
as regras sobre o direito de greve podem ser agravadas em atenção à necessidade
de continuidade dos serviços públicos, que decorre daquele princípio. Limites e
sacrifícios aos direitos trabalhistas podem ser impostos em benefício da
coletividade e de um (suposto) interesse público. Em texto publicado à época,
classificamos essa concepção como um “direito do trabalho do inimigo”, ou seja,
uma argumentação que inverte inteiramente a lógica do sistema de proteção do
trabalho, pois pressupõe, de início, que a greve é algo perigoso, que deve ser
evitado de todas as formas – daí o “dever” de cortar o ponto dos grevistas.
O STF ainda não concluiu o
julgamento da ADI 5766, que impugna dispositivos da “reforma trabalhista” sobre
o direito à gratuidade de justiça. O relator, min. Luís Roberto Barroso, votou
pela procedência parcial, propondo que o direito à gratuidade de justiça pode
ser regulamentado para “desincentivar a litigância abusiva”. Entendeu possível
a cobrança de honorários e de custas do hipossuficiente, mesmo se beneficiário
da justiça gratuita. Justificando sua posição, o ministro sinalizou que a
questão era decidir o que seria melhor para os trabalhadores, para a sociedade
e para o país.
Após o voto do relator e do min.
Edson Fachin (esse último julgando procedente o pedido), o processo foi
suspenso em razão de pedido de vista. Caso prevaleça a posição do ministro
relator, o STF dará mais um passo no sentido de se impor limites a direitos
trabalhistas – dessa vez com relação ao acesso à justiça – em prol da
sociedade.
Nos três processos aqui
referidos, é possível identificar uma linha argumentativa coesa: as proteções
que o ordenamento jurídico destina aos trabalhadores são aplicadas de acordo
com seu potencial de ameaça ou não à sociedade e às demandas e necessidades do
mercado. Há, no pano de fundo, uma redução da sociedade ao mercado: o que
interessa à sociedade, e, curiosamente, aos próprios trabalhadores, é tão
somente o que interessa ao mercado, nada mais.
A
Constituição e o lugar dos direitos sociais
As decisões do STF significam uma
reescrita da Constituição de 1988. É necessário compreender o alcance desse ato
radical de ressignificação do texto.
Um dado muito importante no
estudo do constitucionalismo contemporâneo está ligado ao que se pode chamar de
“topografia constitucional”. Qual é o lugar dos direitos na arquitetura do
texto? Que tipo de sequência ordenada caracteriza a narrativa constitucional?
Já no art. 1º da Constituição, para além da presença da expressão “trabalho”
(que vem acompanhado da “livre iniciativa”, numa típica solução de compromisso
de uma Assembleia composta por representantes com interesses bastante
distintos), é possível aferir a presença do trabalho humano (e da necessidade
de sua proteção) no inciso III, referente à dignidade da pessoa humana, assim
como no art. 3º, inciso I, voltado à construção de uma “sociedade livre, justa
e solidária” e também no inciso III, cujo objetivo é o de “erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Logo
adiante, no art. 6º, o direito ao trabalho é apresentado como um dos direitos
sociais, sendo que o art. 7º enumera o catálogo dos direitos de todos os
trabalhadores urbanos e rurais. O art. 8º cuida da organização sindical e o
art. 9º estabelece, de forma clara e insofismável, o direito de greve. Todos
esses dispositivos estão inseridos no Título II da Constituição, destinado aos
direitos e garantias fundamentais.
Essa centralidade da proteção ao
trabalho humano modifica substancialmente o tratamento do tema na história
constitucional brasileira. Os direitos conectados ao mundo do trabalho vinham
sendo apresentados, nas constituições anteriores, na seção destinada à ordem
econômica, da qual eram parte indispensável. Essa transformação, contudo, não
chega a ser inédita. Ela está inserida num contexto internacional do
constitucionalismo pós-1945, que se manifestou especialmente em países europeus
que ressurgiam da experiência da guerra (Itália e França) ou que lograram
superar regimes ditatoriais (Espanha e Portugal). As constituições desses
países – em pleno vigor nos dias atuais – se caracterizam pelo protagonismo da
proteção ao trabalho humano.
Todos esses países têm
constituições mais antigas do que a brasileira. E neles não se manifestou a
necessidade, ou o desejo, de ressignificar a opção pelo mundo do trabalho. Essa
tarefa, no Brasil, foi assumida pelo STF, antes mesmo da reforma trabalhista,
como pudemos observar. Por razões que ainda precisam ser estudadas, o STF
passou a se ocupar, de modo ativo, do mundo do trabalho, sempre com o
fundamento da valorização da livre iniciativa, sem consideração efetiva do
valor social do trabalho. Quando a história desse turbulento período
compreendido entre 2016 e 2018 for escrita, uma designação será a mais
apropriada para descrever a atuação do órgão de cúpula do Judiciário
brasileiro. Entre 2016 e 2018, o STF foi o tribunal do mercado.
CRISTIANO PAIXÃO – Professor Adjunto
da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília.
Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito
Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola
Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en
Sciences Sociales (Paris). Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos,
Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e
“Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro
da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de
Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB
RICARDO LOURENÇO
FILHO –
Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região; Doutor e
Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB;
Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; Integrante do
grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do
Constitucionalismo” (CNPq/UnB)
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