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| 29/10/2017 | Anamatra | Jota Info | DF
"Contratos precários não aumentam a
produtividade"
Noemia
Porto, vice-presidente da Anamatra, falou ao JOTA sobre a reforma trabalhista
Não
existe resistência, mas sim uma "postura crítica" dos juízes do
trabalho em relação à reforma trabalhista. Essa é a posição da vice-presidente
da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, em
relação à polêmica instaurada em torno da norma, que entra em vigor no dia 11
de novembro.
Dias
antes de a reforma trabalhista passar a valer, juízes do trabalho estão sendo
criticados por apresentarem resistência à lei que já foi aprovada pelo
Congresso Nacional. Os ânimos ficaram ainda mais exaltados após a divulgação de
125 enunciados sobre a interpretação e aplicação da Lei 13.467/17 pela
Anamatra.
"O
que existe é uma postura crítica ao se analisar quase 200 dispositivos que
foram aprovados com tramitação breve no Congresso, contemplando diversas
inconsistências redacionais, impropriedades inconstitucionais e contrariedades
às convenções internacionais", afirmou Noemia em entrevista ao JOTA.
A vice-presidente
da Anamatra defendeu ainda que um dos principais problemas do mercado de
trabalho brasileiro é a alta rotatividade dos trabalhadores. Isso, segundo ela,
reflete na produtividade.
"A
permanência no vínculo aumenta a produtividade. A proliferação de contratos
atípicos não potencializa, qualitativamente, a melhor produtividade do setor
econômico. Portanto, há um problema que, na reforma, não encontra solução, mas
sim agravamento. Contratos precários não aumentam, em nenhum lugar do mundo,
qualitativamente a produtividade", disse.
Ao JOTA,
Noemia Porto falou ainda sobre o conceito de trabalhador hipersuficiente, o uso
de arbitragem trabalhista e sobre o discurso de que juízes do trabalho são
ideologicamente pró-trabalhador.
Leia a entrevista:
Depois de
aprovados os enunciados sobre a Reforma Trabalhista, a Justiça do Trabalho foi
apontada como foco de resistência contra a lei aprovada pelo Congresso. Existe
resistência dos juízes do trabalho à nova legislação?
Noemia Porto: Não
existe resistência. O que existe é uma postura crítica ao se analisar quase 200
dispositivos que foram aprovados com tramitação breve no Congresso,
contemplando diversas inconsistências redacionais, impropriedades
inconstitucionais e contrariedades às convenções internacionais. Audiências
públicas e reuniões foram convocadas pelo Parlamento. No entanto, não foram
incorporadas sugestões apresentadas pela representação da Magistratura, do
Ministério Público, da advocacia, da auditoria fiscal do trabalho ou de
pesquisadores e professores da área. No Senado, o Presidente da República
chegou a enviar carta aos parlamentares comprometendo-se a vetar dispositivos,
o que não ocorreu. O debate naquela etapa foi apenas formal, isto é, sem real
intenção de um diálogo social.
Aprovada
a nova lei nesse contexto os juízes, diante do impacto que ela causa na
estrutura normativa trabalhista, fizeram e fazem o que seria até esperado, isto
é, estão promovendo seu estudo prévio, discutindo em artigos jurídicos,
participando de seminários e dialogando com outros profissionais da área como
procuradores do Trabalho, auditores fiscais e advogados. Afinal, terão os
juízes que atuar de forma independente como instituição, respondendo às
diversas demandas judiciais que surgirão a partir disso. Diante de uma
legislação nova, devem mesmo os juízes debater seu conteúdo, revisitar a melhor
doutrina e pesquisar a teoria constitucional. Devem os juízes, portanto,
estarem preparados para a sua atividade de julgamento dos casos concretos neste
novo cenário.
Há também
incompreensões sobre o poder de os magistrados não aplicarem a nova legislação
por considerá-la inconstitucional. Poderia explicar a posição dos juízes
trabalhistas em relação aos pontos que consideram inconstitucionais?
Noemia Porto: Desde a Constituição
de 1891 inaugurou-se no Brasil a tradição do judicial review, ou seja, ao
prestar jurisdição os juízes brasileiros, em todos os casos concretos, têm o
poder de analisá-los sob a melhor luz constitucional. Leis infraconstitucionais
devem obediência à Constituição. No Estado Democrático de Direito, observada a
Separação dos Poderes, uma das tarefas da jurisdição é a de verificar em que
medida a legislação aprovada observou o limite de obediência ao Texto
Constitucional. Isso ocorre em qualquer ramo jurídico: Penal, Previdenciário,
Civil, etc. No caso específico da Lei nº 13.467/2017, alguns pontos demandarão
interpretação que a melhor adapte aos limites constitucionais. Quando essa
interpretação não for possível, restará apenas ao juiz, no caso concreto,
reconhecer a sua inconstitucionalidade.
Posso
citar alguns exemplos da nova previsão que causam enorme polêmica quanto à sua
constitucionalidade, como a limitação do acesso ao Poder Judiciário dos
trabalhadores mais pobres e beneficiários da gratuidade de justiça, que teriam
que fazer prova da condição de miserabilidade.
Há ainda
a tentativa de atingir a independência judicial da Magistratura definindo
critérios para que se profira julgamentos, como no caso da análise de acordos
ou convenções coletivas de trabalho em que se teria que observar uma
intervenção mínima. O mesmo ocorre na tentativa de restringir e limitar a
edição de súmulas de jurisprudência. Além disso, normas de medicina e segurança
do trabalho conectam-se, claramente, com o direito fundamental ao meio ambiente
devidamente equilibrado, e que alcança o campo do trabalho. Nesse contexto,
poder flexibilizar e ampliar jornada, reduzir intervalo, definir graus
diferentes para atividades insalubres e permitir, ainda que com atestado
médico, que gestantes trabalhem em ambientes não salubres, são temas que
tensionam o sistema constitucional brasileiro.
O
discurso oficial é de que a nova lei trabalhista veio para modernizar as
relações de trabalho e para melhorar o sistema, permitindo que empresas criem
novos empregos com regras mais flexíveis. Nesse sentido, é possível interpretar
os enunciados como resistência da Justiça do Trabalho à reforma?
Noemia
Porto: Quando se
afirma que haverá modernização, é importante questionar: modernizar o quê? E na
perspectiva de quem? Um dos principais problemas do mercado de trabalho
brasileiro é a alta rotatividade dos trabalhadores, com reflexos na
produtividade. A permanência no vínculo aumenta a produtividade. A valorização
do trabalhador o conecta com o ambiente laboral. A proliferação de contratos atípicos
não potencializa, qualitativamente, a melhor produtividade do setor econômico.
Portanto, há um problema que, na reforma, não encontra solução, mas, sim,
agravamento. Contratos precários não aumentam, em nenhum lugar do mundo,
qualitativamente a produtividade.
De outra
parte, o aumento de postos de trabalho está diretamente relacionado à demanda
por produtos e serviços. Reforma trabalhista que precariza não aumenta os
postos de trabalho, apenas altera a qualidade dos já oferecidos. Para além
dessas questões, importante frisar que os enunciados não são resistência à
reforma. São possibilidades de interpretação, teses jurídicas, reflexões
preliminares e posturas críticas que decorrem da conjugação do texto aprovado
com o compromisso com a Constituição e com as convenções internacionais. Mais
importante do que isso, surgem da experiência profissional cotidiana de
magistrados, procuradores, auditores fiscais e advogados que acumulam anos de
análise sobre as disputas no mercado de trabalho brasileiro.
As empresas
precisam de previsibilidade para investirem e assim criarem novos empregos. Com
a Reforma Trabalhista aprovada, mas com enunciados contrários a alguns pontos
da lei, o que o empresário deve ter em mente na hora de contratar alguém?
Cumpre a regra atual, que entrará em vigor em novembro, ou segue a lei
anterior, pois a Justiça Trabalhista não concorda com parte das mudanças?
Noemia
Porto: A nova
lei não propicia nenhuma previsibilidade. O texto, como foi aprovado, com suas
inconsistências e impropriedades, gerará diversas disputas em torno do sentido
adequado que deverá prevalecer. Essas disputas estão potencializadas num
ambiente em que o diálogo social não foi prestigiado. Então, a insegurança
jurídica tem origem no próprio texto.
Aliás,
quando o empresário lê o texto, sequer ele consegue extrair um sentido unívoco
dos dispositivos. Cito um exemplo sobre a insegurança jurídica que o próprio
texto gera. Há possibilidade de negociar o enquadramento do grau de
insalubridade (art. 611-A, XII). Paradoxalmente, prevê-se a impossibilidade de
se negociar normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei
ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho (art. 611-B, XVII).
Ocorre que são justamente essas normas regulamentadoras que preveem o grau de
insalubridade. Então, afinal, o que esses dispositivos significam
concretamente? Quanto à contratação de novos trabalhadores, isso realmente
depende do que pretende o empresário. Se o foco for um negócio de longa
duração, com prestígio à produtividade qualitativa dos serviços ou produtos
gerados, agregando valor, inclusive na perspectiva de quem consome o produto ou
o serviço, prevenindo-se demandas e evitando-se passivos, eu diria que a lógica
será sempre a mesma: valorizar quem contribui para o negócio. Precarizar
contratos não valoriza ninguém, apenas descompromissa.
Há um
discurso rápido de que juízes do trabalho são ideologicamente pró-trabalhador
e, por consequência, contra empresas. Como a senhora avalia esse tipo de
discurso?
Noemia Porto: Essa é uma daquelas acusações que
se repete sem nenhum embasamento, tendo finalidade meramente pejorativa. O
Direito do Trabalho, assim como o Direito do Consumidor, por exemplo, tem viés
protetivo, considerando a desigualdade estrutural do mercado de trabalho e, no
segundo caso, do mercado de consumo. Os juízes dessas áreas aplicam normas que
têm como matriz essa proteção. Todavia, quando atuam nos casos e julgam os
processos, avaliam as provas e os elementos de convencimento, para só então
proferirem decisões que consideram corretas para o caso. Desse modo, essa
suposta ideologia pró-trabalhador é daquelas frases de quem prefere que juízes
não julguem e que o Judiciário não funcione.
A senhora
poderia explicar o que fundamentou a decisão dos juízes do trabalho para
aprovarem os cinco principais enunciados abaixo:
Literalidade
da lei - Foi aprovado enunciado que repele a ideia segundo a qual os juízes só
devem observar a literalidade da lei sem interpretá-la, comprometendo a livre
convicção motivada de cada juiz do Trabalho, que é responsável por apreciar
qualquer litígio de maneira imparcial e tecnicamente apta para, à luz das
balizas constitucionais e legais, dizer a vontade concreta da lei.
Noemia
Porto: Este
enunciado consolida o entendimento que é pacífico na doutrina e na
jurisprudência nacional, e não apenas no campo do trabalho, ou seja, que os
juízes quando julgam interpretam; que todo texto exige o contexto de
interpretação normativa; que a aplicação normativa depende da realidade posta
em cada caso concreto; que o juiz como "boca da lei" é apenas um
mito, difundido por Bonaparte no Código Civil de 1804; que a legitimidade dos
juízes e do Poder Judiciário emana diretamente da Constituição e que juízes,
numa democracia, são independentes. Talvez o estranhamento venha de uma época
em que o óbvio precisa ser afirmado e reafirmado o tempo todo.
Tarifação
do dano moral - A Plenária também acolheu tese no sentido de ser dever do
Estado a tutela de reparação ampla e integral quando restar violada a moral das
pessoas humanas, sendo inconstitucional a tarifação do dano extrapatrimonial
pelo salário do trabalhador. Ao revés, devem ser aplicadas todas as normas
existentes no ordenamento jurídico que possam imprimir, ao caso concreto, a
máxima efetividade constitucional ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Noemia
Porto: Nesse
caso, o enunciado se baseou em importante precedente do Supremo Tribunal
Federal que analisou a tarifação contida na antiga Lei de Imprensa. A tarifação
do sofrimento alheio é inconstitucional porque há garantia normativa de
reparação integral. De fato o Supremo, interpretando a norma
infraconstitucional à luz da Constituição, considerou que "a Constituição
de 1988 emprestou à reparação decorrente do dano moral tratamento especial -
C.F., art. 5º, V e X - desejando que a indenização decorrente desse dano fosse
a mais ampla. Posta a questão nesses termos, não seria possível sujeitá-la aos
limites estreitos da lei de imprensa. Se o fizéssemos, estaríamos interpretando
a Constituição no rumo da lei ordinária, quando é de sabença comum que as leis
devem ser interpretadas no rumo da Constituição". É exemplo o RE 315297,
Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgado em 20 de junho de 2005, e publicado
em DJ de 10 de agosto de 2005, PP-00087.
Jornada
intermitente e 12×36 - Os participantes apontaram a desconformidade da previsão
da Lei da reforma trabalhista quanto à possibilidade de jornada de trabalho
intermitente de forma indiscriminada. Entenderam que os contratos de trabalho
para essas modalidades devem se restringir às atividades de caráter intermitente.
A Plenária também rejeitou a possibilidade de se oficializar a jornada 12×36
mediante acordo individual. A tese aprovada nessa temática preconiza
necessidade de que tal tipo peculiar de jornada tenha previsão em acordo
coletivo ou convenção coletiva de trabalho, conforme o art. 7º XIII, da
Constituição Federal. Nesse ponto, também pontuaram a impossibilidade de regime
"complessivo", na jornada 12×36, quanto ao pagamento de feriados e
prorrogação de jornada noturna, por afronta à previsão constitucional.
Noemia
Porto: A jornada
12 X 36 era aceita, excepcionalmente, na jurisprudência, nas hipóteses em que,
negociada coletivamente, atendia determinados setores específicos, como saúde
ou vigilância. A interpretação da norma demanda pensar nessa excepcionalidade,
isso porque jornadas longas, ainda que seguidas de 36 horas de descanso,
notadamente em alguns setores econômicos, pode potencializar o risco de
acidentes e de doenças profissionais. A Constituição prevê a redução dos riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art.
7º, XXII). Na mesma linha, se a lei visava prestigiar a negociação coletiva,
não se pode admitir negociação direta individual, até porque a Constituição
(art. 7º, XIII) possibilita regimes compensatórios, mas pela via do acordo ou
convenção coletiva de trabalho, o que está na linha de prevalência, também, da
Convenção nº 98 da OIT, que foi ratificada pelo Brasil em 1952. Além disso, o
direito ao descanso mínimo é igualmente temática importante quando se trata de
prevenção de acidentes ou de adoecimentos no trabalho. Importante destacar que
o Brasil contabiliza mais de 700 mil acidentes do trabalho por ano, sendo o 4º
no ranking mundial.
O Brasil,
aliás, em 1994, ratificou a Convenção nº 155 da OIT, que versa sobre Segurança
e Saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho, comprometendo-se com
esses princípios. De outra parte, o salário é protegido constitucionalmente
(art. 7º, VII) e qualquer contrato, incluindo o de trabalho, deve ser regido
pela boa-fé objetiva e pela transparência. Por isso, não é viável aceitar que
ocorram pagamentos "embutidos" ou complessivos, isto é, valores que
englobem, a um só tempo, rubricas diversas. Os feriados devem ser usufruídos ou
pagos como tais, como, aliás, já estava expresso na Súmula nº 444 do TST. Por
fim, a Constituição garante a remuneração do trabalho noturno superior à do
diurno (art. 7º, IX), sem nenhuma exceção. Acredito que seja possível
visualizar que o enunciado, em suma, está embasado na normatividade da
Constituição do Brasil e nas normas internacionais ratificadas que possuem
caráter de supralegalidade.
Honorários
de sucumbência e de peritos - As dificuldades que a nova lei impõe ao acesso à
justiça gratuita também foram objeto de debates na Jornada. Nesse sentido, foi
aprovado enunciado que prevê que as novas regras para os honorários
sucumbenciais não se aplicam aos processos que já estejam tramitando quando da
vigência da lei, em razão do princípio da causalidade, uma vez que a expectativa
de custos e riscos é aferida no momento de propositura da ação trabalhista.
Entendeu-se, ainda, que o trabalhador beneficiário da justiça gratuita não pode
ser condenado ao pagamento de honorários sucumbenciais em processos quaisquer.
Também foi consenso a gratuidade no pagamento dos honorários de peritos do
trabalho para os beneficiários da assistência judiciária gratuita, ante a
violação, no particular, do art. 5º, XXXV e LXXIV, CF.
Noemia
Porto: Em
primeiro lugar, duas garantias fundamentais foram consideradas na construção do
raciocínio. A primeira delas diz respeito à universalidade da jurisdição. Desse
modo, todo e qualquer cidadão tem o direito de acionar o Judiciário para
debater lesão ou ameaça a direito. Além disso, para aqueles que necessitem, o Estado
deve prover assistência judiciária gratuita, de preferência, aliás, através das
Defensorias Públicas.
No campo
trabalhista, há pouquíssima atuação da defensoria pública. Por essa razão, os
trabalhadores, sobretudo os mais pobres, fazem uso da justiça gratuita como
forma de acesso ao debate judiciário. Encarecer o processo para o trabalhador
ou desvelar ameaças econômicas em caso de sucumbência, com o pagamento de
diversos valores, implica, na prática, em negativa de acesso ao Judiciário.
Além disso, a Lei nº 13.467/2017 não apenas modifica normas processuais. Na
realidade, ela as modifica de modo a terem reflexos no patrimônio das pessoas.
Assim, são processuais com projeções materiais, e isso em campo jamais previsto
antes (como pagamento de custas, honorários advocatícios e honorários
periciais). Essa modificação, portanto, não pode simplesmente alcançar
processos em curso. O cidadão não pode ser surpreendido com esses
"solavancos" do Estado Legislador. Essas surpresas agridem a ideia de
um mínimo de segurança jurídica.
Terceirização
- No campo da terceirização, foram aprovadas diversas teses, a exemplo do texto
que diz que a terceirização não pode ser aplicada à Administração Pública
direta e indireta, como sucedâneo do concurso público, restringindo-se às
empresas privadas. Também se entendeu que os empregados das empresas
terceirizadas devem ter direito a receber o mesmo salário dos empregados das
tomadoras de serviços, dedicados às mesmas atividades, bem como usufruir de
iguais serviços de alimentação e atendimento ambulatorial.
Noemia
Porto: Nos
estritos termos do art. 1º da Lei nº 6.019/74, modificada pelos textos de 2017,
seu propósito é o de reger as relações de trabalho na empresa de trabalho
temporário, na empresa de prestação de serviços e nas respectivas tomadoras de
serviço.
A
referida lei, com as alterações sofridas, também prevê que empresa prestadora
de serviços a terceiros é aquela que transfere a execução de quaisquer de suas
atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito
privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a
sua execução. Além disso, a atual previsão permite a subcontratação. Ora, a lei
de trabalho de temporário nunca serviu para regular as contratações feitas pela
Administração Pública, então sua alteração não pode, sem previsão explícita, e
sem violar a Constituição, suplantar tal limite regulatório. Esses arcabouços
conceituais não são compatíveis com os princípios que regem a Administração
Pública - art. 37, caput -, notadamente considerando a legalidade estrita, que
exige norma própria para esse tipo de descentralização administrativa, e a
eficiência, que também deve considerar a abrangência satisfatória de serviços
públicos de qualidade, que não se compatibilizam com contratações precárias.
Para além
disso, o inc. II do art. 37 consagra o princípio da igualdade no primado do
mérito, no acesso aos cargos e aos empregos públicos mediante concurso público
de provas ou de provas e títulos, motivo pelo qual a contratação intermediada
para serviços de necessidade permanente viola a aludida previsão. Mesmo a
hipótese de contratação temporária de excepcional interesse público apenas pode
ser realizada nos casos estabelecidos em lei - art. 37, IX -, vale dizer, lei que
expressamente cuide das especificidades da Administração Pública, não sendo
viável estender, por analogia, o marco regulatório da contratação temporária da
iniciativa privada. O art. 173, § 1º, II, da Constituição sujeita as empresas
públicas e as sociedades de economia mista ao regime próprio das empresas
privadas, inclusive quanto aos direitos e às obrigações trabalhistas. Isso
significa que, embora os empregados sejam admitidos mediante concurso público -
art. 37, II, da Constituição -, o regime jurídico de regência dos contratados
será o mesmo que impera no campo da iniciativa privada. Todavia, a despeito do
regime de regência dos contratos de emprego, a empresa pública e a sociedade de
economia mista não deixam de ser integrantes da Administração Pública indireta
e, exatamente por isso, se enquadram na concepção ampliada de Poder Público.
A empresa
pública e a sociedade de economia mista se equiparam ao empregador privado para
alguns efeitos, mas não é um empregador privado. Os atos que praticam, inclusive
na condição de empregadoras, não são meros atos de gestão comercial, isso
porque se encontram vinculadas, necessariamente, aos princípios que vinculam a
atuação de toda a Administração Pública - art. 37, caput, da Constituição -,
incluindo o da impessoalidade. Portanto, fundamental reconhecer-se a natureza
híbrida que se estabelece na relação da empresa pública e da sociedade de
economia mista com os empregados contratados mediante concurso público, sendo
certo, ainda, que os atos que praticam, mesmo quando empregadoras, não deixam
de ser atos que devem obediência à totalidade dos princípios da ordem
administrativa pública brasileira. No mais, no caso da terceirização na
iniciativa privada, a sua existência não afasta a imperatividade da incidência
do princípio da isonomia insculpido na Constituição. O direito fundamental à
igualdade é indisponível. Então, não se pode, a pretexto da terceirização,
pagar salários diferentes ou negar acesso a benefícios disponibilizados pela
empresa tomadora.
Quais
pontos a senhora apontaria como positivos na reforma trabalhista?
Noemia
Porto: A análise
sobre o que é positivo ou negativo sempre depende do ponto de vista e de como
ficará a vida dos diretamente afetados. Todavia, comparando o que havia - e que
não era perfeito -, cumulado com diversas demandas por alterações normativas
que não vieram - nunca se regulamentou adequadamente, por exemplo, o art. 7º,
I, da Constituição sobre proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa
causa -, cumulados com o que foi produzido - Lei nº 13.467/2017 -, não consigo
apontar nenhum item que possa ser considerado de avanço na perspectiva do
aperfeiçoamento da cláusula de progressividade que o sistema brasileiro alberga
quanto aos direitos sociais - art. 2º, I, do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado em 1992.
Na
justificativa do enunciado sobre arbitragem trabalhista, lê-se que "em
sendo entabulada a cláusula de arbitragem, presume-se a existência de coação
(CLT, art. 9º; CC, art. 167, II), diante do estado de necessidade do
trabalhador, em sentido econômico, e pelo receio de vir a sofrer
retaliações". Isso significa que, na visão da Anamatra, não há hipótese
possível de arbitragem trabalhista?
Noemia
Porto: Na
realidade, existe arbitragem trabalhista. Ela está prevista na Constituição - §
2º do art. 114: 'recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à
arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo
de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito,
respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as
convencionadas anteriormente'-. O que não é viável é que o trabalhador, ao ser
contratado, assine documento concordando com a arbitragem, porque aqui não há
nenhuma liberdade ou verdadeira autonomia na manifestação de vontade ou de
pensamento. A pessoa está premida pela necessidade de se empregar, de ter um
posto de trabalho, de se ver numa ocupação que possa garantir o seu sustento e
de sua família. Qual a condição que teria de "negociar" se quer ou
não arbitragem? A arbitragem individual é que foi afastada, e não a coletiva,
que tem previsão constitucional.
A partir
de qual patamar a senhora consideraria um trabalhador hipersuficiente? Ainda
assim, ele nunca poderia negociar condições inferiores em relação à negociação
coletiva mesmo que em diversos outros aspectos usufrua de condições melhores do
que o que o negociado pelo sindicato/convenção?
Noemia
Porto: Essa diferença inédita que a Lei nº 13.467/2017 inaugura
entre "hipersuficiente" e "hipossuficiente" não encontra
respaldo constitucional. Dentre os objetivos da República brasileira se
encontra o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, o que inclui patamar
salarial. No art. 7º da Constituição, retomando o tema da não-discriminação, a
Constituição prevê a impossibilidade de distinções entre os trabalhadores.
Portanto, a proteção jurídica não pode ser dividida entre a que se designa como
"hiperssuficiente" e "hipossuficiente", escolhendo-se, para
essa finalidade, o fator remuneratório. Há, outrossim, verdadeiro equívoco em
se imaginar que o "hipersuficiente" não necessite de adequada e
abrangente proteção jurídica, considerando que o mercado de trabalho é
assimétrico, sem contemplar efetivas condições de igualdade, mesmo no caso de
trabalhadores com salários mais altos.
Na
perspectiva técnico-científica, aliás, é insustentável que o direito ao
trabalho, e decorrente dele o Direito do Trabalho, dependa para a sua aplicação
normativa integral e sistêmica do salário atribuído àquela que demanda do
cidadão por proteção. Da mesma forma, ainda na perspectiva constitucional, não
se vislumbra hipótese em que a negociação coletiva possa abarcar esse tipo de
distinção. Em suma, o que está em jogo é a seriedade com o que se considera a
normatividade constitucional.
*Contribuiu:
Kalleo Coura
Felipe
Recondo - Brasília
Livia
Scocuglia - Brasília