O
Poder Judiciário deve ser independente, imparcial, transparente e talvez até deva ser,
digamos, valente.
Quer
ver o que pensa da justiça um jovem bacharel em direito?
Quem
se importa com justiça?
Andrey
Coutinho (bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará-UFC, servidor
de carreira do TRE-SP)
O
judiciário existe pra solucionar problemas que acontecem em concreto na
sociedade. Pra fazer valer a Constituição e as leis, nossas regras de convivência
supostamente produzidas mediante consenso social democrático; consertar
injustiças, desfazer distorções.
Ocorre
que o próprio judiciário, em sua atuação diária, também está cheio de problemas
para serem corrigidos. Alguns são pontuais, fruto de atuação corrompida de
certos agentes públicos (o caso da venda de liminares no nosso Tribunal de
Justiça vem à mente). Mas os principais problemas são macro, são de ordem
estrutural. E por trás de todos eles, há o maior obstáculo: quem de fato se
interessa em ter um judiciário efetivamente comprometido com a justiça?
O
real problema, a meu ver, é que pouquíssimas pessoas efetivamente se importam
ou têm compromisso com uma acepção intelectualmente honesta de justiça.
Veja
bem, as concepções teóricas de justiça que embasam todo o nosso direito são
extremamente abstratas e intelectuais. Você pode estudar Direito por anos (ou a
vida toda) sem dominar ideias basilares como a relação entre o Direito e a
Moral, de onde vem a necessidade de inércia e imparcialidade do órgão julgador,
qual a importância da Dignidade da Pessoa Humana etc.
Se
isso é difícil pra um estudioso... o que dizer então da sociedade em geral?
A
ciência do Direito se debruçou intelectualmente sobre essas questões por muito
tempo e chegou às conclusões mais variadas, que foram gradativamente sendo
combatidas por outras conclusões, até então chegarmos onde estamos: um
conhecimento obviamente muito longe de perfeito, mas bem mais aperfeiçoado que
o de outrora sobre como a aplicação do direito ocorre e como deve ocorrer.
Quando
dizemos que somos justos, ou que queremos justiça, estamos muitas vezes
carregando bandeiras que vão na completa contramão desses conhecimentos, seja
por ignorância, seja por mera paixão.
Quando
se trata de justiça, a maior parte das pessoas se contenta com a satisfação
dessas paixões. Como vamos solucionar essas questões estruturais do judiciário
brasileiro se não há um efetivo interesse em justiça?
Pensemos
na Coca-Cola. A Coca-Cola não quebra, porque as pessoas desejam sinceramente
beber Coca-Cola. Não é necessário para uma pessoa se educar acerca da Coca-Cola
pra querer beber Coca-Cola. Ela bebe porque acha bom. Está disposta a pagar e,
com isso, sustentar a manutenção e aprimoramento das atividades da Coca-Cola
enquanto empreendimento.
A
quantos interessa beber "imparcialidade do órgão julgador"? A quantos
interessa beber "máxima eficácia dos direitos fundamentais"? A
quantos interessa beber "contraditório e ampla defesa"? Poucos, muito
poucos. A alguns interessa a "prisão da bandidagem", a vários
interessa que "empregada doméstica não coloque na justiça", outros só
querem "Lula preso amanhã", ou simplesmente que "seja lá qual
for o problema que eu tenho na justiça seja julgado favorável a mim
simplesmente porque sim e se não for é injustiça".
O
ponto é: nada disso é interesse pela justiça. São interesses pontuais como
solução para situações concretas, já partindo de pré-julgamentos. Basta uma
notícia falando sobre uma decisão judicial contrária às suas convicções pessoais
que está anunciado o "fracasso da justiça". Ora, pense bem: se você
acha que o pré-julgamento de alguém leigo e sem nenhum conhecimento da causa
(como você ao ler a notícia) é mais válido que a solução encontrada pelo
judiciário após dispor do seu corpo técnico presumivelmente qualificado para se
debruçar sobre os pormenores da causa, qual é a concepção de
"justiça" que você defende?
E
se ninguém quer beber "justiça", ninguém quer pagar
"justiça". Se ninguém quer pagar "justiça", uma hora o
judiciário quebra. Ou chega bem perto disso.
Interesse
pela justiça é interesse em um judiciário efetivamente equipado, capacitado,
independente, despido de politização, razoável, imparcial, técnico,
transparente, coerente, prestativo e eficiente. Não um judiciário que alega, da
boca pra fora, defender uma noção vaga de justiça que, na prática, varia de
acordo com interesses e paixões pessoais, mas sim um judiciário sempre pautado
na constituição, no direito positivo e na melhor base teórica para sua
interpretação, com honestidade intelectual.
Mas
isso, por mais necessário que seja, é simplesmente muito chato. Isso só existe
porque o Estado se propõe a oferecer, e aí alguns fingem que se importam, e
mantém-se essa estrutura meia-boca, sempre carente de reformas profundas, mas
que ninguém faz porque simplesmente ninguém se importa de fato.
Resta
esse peso morto, que não cumpre o que se propõe a cumprir. E como ninguém
entende ou se importa com o que efetivamente é a tal proposta de
"justiça", fica por isso mesmo.
E
aí fica fácil para alguns defender que era até melhor "acabar com tudo
mesmo" ou "enxugar ao máximo", como se fosse solução.
Eu
não tenho nenhuma solução pra isso. Apenas o respeito aos que ainda resistem a
todos as intempéries e continuam (tentando) aplicar o direito com honestidade
intelectual. E a esperança de que o conhecimento jurídico das últimas décadas
não fique aprisionado na academia e chegue àqueles que são os seus
financiadores e, ao mesmo tempo, beneficiários: a própria população. Só assim pode-se
começar a pensar em um compromisso com a melhoria da justiça no Brasil.
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