Missão constitucional
O Legislativo elabora e aprova as leis. O
Executivo as sanciona. E o Judiciário as interpreta e aplica
POR GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO
/ NOEMIA GARCIA PORTO
Imaginemos um texto legal
produzido por notáveis representantes populares, sob o comando do Executivo. Um
texto que, pelo que se acredita, dispensa interpretação, seja evidente e
inquestionável. Essa crença já teve preponderância, há muito tempo, com o
Código de Bonaparte, em 1804, tendo sua influência, no Brasil, entre as
Constituições de 1824 e 1891.
Estamos em 2017, em um estado
democrático, como expressa a Constituição. Compreende-se hoje que todo texto exige
o contexto de aplicação normativa, já que a realidade dinâmica da vida é por
onde orbitam os tantos casos submetidos ao Judiciário. O próprio STF já
reconheceu, em voto do ministro Eros Grau, que o texto não é a norma. A norma
se extrai do texto, pela via de interpretação.
O papel dos juízes é, pois, o de
empreender soluções adequadas às demandas concretas por justiça, a partir de
textos normativos e da realidade dos fatos. Interpretar é concretizar o
direito.
Então por que tem causado tanto
espanto a ideia de que juízes (em especial, os trabalhistas) interpretarão a
lei? O ato de interpretá-la os torna “rebeldes”? Não. Cumprem a sua missão
constitucional. A retórica da literalidade tem claro propósito: o de intimidar
magistrados, procuradores, auditores e advogados, diante das disputas
semânticas no cenário de alteração das normas.
A Lei nº 13.467/17, de brevíssima
tramitação no Congresso, deverá ser interpretada, assim como todas sempre
foram, são e serão. Esse fato não é inovador, tampouco é a tentativa de
rejeitá-lo, que remete à época de Bonaparte.
O discurso da suposta “rebeldia”
dos juízes retoma um cenário do século XVIII-XIX e defende o indefensável: que
o texto legislativo é autoevidente, dispensa interpretação e a “segurança
jurídica” está nele próprio. Essas premissas foram afastadas nos processos de
redefinição dos estados constitucionais modernos, por serem falsas.
O que a reforma vai gerar ou
modernizar e para quem? Não se pode antecipar resposta. Outra pergunta parece
mais pertinente: qual é o papel dos juízes numa democracia? Sobre o Judiciário
depositam-se expectativas dos cidadãos pela concretude dos direitos
fundamentais, num sistema que tem na pessoa humana o seu valor central.
O Legislativo elabora e aprova as
leis. O Executivo as sanciona. E o Judiciário as interpreta e aplica. Assim
funciona a República. Nos sistemas de “civil law”, como é o brasileiro, o
lastro da justiça é sempre a lei, que não esgota o Direito. Há que cotejá-la
com a Constituição, com as convenções internacionais e demais leis.
A visão que propõe aos juízes o
indefectível apego à letra da lei não é estranha. Surgiu no passado, com o
Código de Napoleão. Mas o que gera profunda apreensão é observar que, passados
213 anos, suas premissas ressurjam com ares de “civilidade”. Puro obscurantismo.
Guilherme Guimarães Feliciano é
presidente e Noemia Garcia Porto é vice-presidente da Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)
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