Vejam importante artigo publicado no site da ANAMATRA sobre a disparidade de tratamento na magistratura
Iguais, porém
separados: o apartheid da remuneração da Magistratura Nacional
O
tempo passa e as gerações mais novas desconhecem ou não entendem a existência
de regimes segregacionistas institucionalizados, como o da África do Sul até
1994. Acabamos também por esquecer que tais regimes, por mais odiosos e brutais
que fossem, dispunham de uma estrutura teórica destinada de legitimá-los.
Assim, o apartheid sul africano
encontrava-se respaldado com a retórica assertiva de que todos eram iguais
independentemente da cor, todavia, também por conta da cor, seriam condenados a
viver separados. Tratava-se de um paradoxo incontornável, mas usando como
retórica para a manutenção de uma situação que, aos poucos, acabou por se
tornar insustentável.
Exemplos
do discurso segregacionista podem ser identificados na regulação jurídica,
embora sem contornos ou consequências
tão gravosas. No entanto, independentemente da natureza do bem jurídico a ser
tutelado, o conceito de isonomia nas relações humanas talvez seja o postulado
mais nítido e contundente, independentemente da ideologia do observador. Vez
por outra, entretanto, as conformações políticas e sociais acabam criando
verdadeiras armadilhas lógicas, nas quais, até inconscientemente, somos capturados.
Não
há dúvidas que uma dessas armadilhas lógicas capturou o sistema remuneratório
da Magistratura da União, transformando esse setor do judiciário nacional em um
segmento dotado de limites e restrições não aplicáveis aos demais integrantes
do Poder Judiciário. Ora, é fato público e notório que, por intermédio da
Emenda Constitucional nº 45/2004, cognominada de reforma do poder judiciário, buscou-se estabelecer um tratamento
homogêneo no que concerne à estruturação daquele poder. Alguns ajustes foram
feitos no sentido de criar um sistema judiciário ordenado e coordenado, com
estruturas transparentes e um comando único.
A
mais significativa alteração nesse particular decorreu da criação do Conselho
Nacional de Justiça que, por força do comando constitucional (art. 103-B, §
4º), tem atribuição nuclear de promover “o
controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do
cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”. Nesse sentido, há uma
incontornável tendência de considerar o judiciário uno, no que concerne ao seu
controle administrativo-financeiro e ao seu estatuto.
A
visão holística da gestão do judiciário espraia-se sobre todas as facetas da
magistratura, inclusive na composição da estrutura remuneratória, conforme
previsto, explicitamente, na CF, arts. 37, XI e § 11; 39, § 4º; e 93, V. Estabelece-se, portanto, um conjunto de
princípios gerais norteadores da contraprestação devida aos integrantes da
magistratura nacional, vinculados à União ou aos Estados-membros, quais sejam:
a) remuneração baseada em subsídio, integrado por parcela única; b)
escalonamento entre as carreiras de no máximo 10% e no mínimo 5%; c) subsídio
dos Ministros do Supremo Tribunal Federal como teto máximo da carreira, bem
como de todo serviço público; d) exclusão das parcelas de caráter indenizatório
do limites dos subsídios, desde que previstas em lei.
A
compreensão dessas características revela a formação de um bloco monolítico e
homogêneo de composição da remuneração da magistratura nacional. Logo, os regramentos
estruturados para todas as carreiras da judicatura emanam de uma fonte
constitucional comum, não podendo se configurar qualquer discrepância ou
discriminação na previsão e aplicação do conjunto retributivo dos magistrados.
Aliás,
essa homogeneidade sempre foi tradição no plano infraconstitucional, com a
existência, há mais de três décadas, de um estatuto comum da magistratura,
representado pela respectiva Lei Orgânica (Lei Complementar nº 35, de 14 de
março de 1979). Assim, sob qualquer ótica que venha a ser observar, a estrutura
das contraprestações devidas aos magistrados brasileiros apresenta origem e
limitações comuns. Ressalte-se, por oportuno que esse postulado já foi, em
diversas oportunidades, referendado pelo Supremo Tribunal Federal, ao reafirmar
o caráter nacional e unitário da Magistratura brasileira, inclusive no que
concerne à forma de remuneração (ADI 3.367 – Relator
Ministro Cezar Peluso, DJ 22-09-2006; ADI
3.854 - Relator Ministro Cezar Peluso, DJ 29-06-2007)
A
prática, no entanto, tem demonstrado que essa harmonia e homogeneidade nem
sempre são observadas, sendo possível identificar inúmeras situações nas quais
o tratamento conferido aos integrantes da magistratura não tem sido isonômico.
Um exemplo eloquente dessa desigualdade é o regramento das parcelas
relacionadas ao auxílio-moradia adimplidas pelos Tribunais Superiores,
inclusive o Supremo Tribunal Federal, bem por diversos Estados da federação.
Lastreado
pela própria LOMAN, há previsão específica para o ressarcimento pecuniário da
garantia ao direito de moradia assegurado aos magistrados em geral, conforme se
vê do art. 65, II: “ajuda de custo, para
moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do
magistrado.”
Tal
dispositivo legal, em nenhum momento, confronta-se com as limitações
constitucionais de percepção de subsídio em parcela única, pois o benefício
assegurado na norma infraconstitucional tem natureza meramente indenizatória,
satisfazendo, assim, os requisitos de excepcionalidade preconizados pela CF,
art. 37, § 11. Em outras palavras, o estatuto da magistratura garante o direito
à moradia por meio de “residência oficial” e preconiza a percepção de vantagem
substitutiva do direito mencionado, corporificando-se, assim, sua natureza
estritamente indenizatória. Aliás, essa foi a orientação estabelecida pelo
próprio Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução n.º 13/2006 que
exclui da incidência do teto remuneratório as parcelas de natureza
indenizatória, entre as quais o auxílio-moradia (art. 8º, I, b).
A
partir desse momento, já é possível estabelecer algumas premissas utilizadas
para restaurar a homogeneidade do sistema de remuneração da magistratura, pelo
menos no que concerne ao chamado auxílio-moradia. Em primeiro lugar, trata-se
de vantagem explicitamente
reconhecida no plano infraconstitucional, sendo assegurada abstrata e
aprioristicamente pelo estatuto da magistratura. Em segundo lugar, dado o seu
caráter estritamente indenizatório, a mencionada parcela acomoda-se
perfeitamente no arcabouço constitucional, especialmente o § 11 do art. 37.
Exatamente
por conta de tais premissas, apresentam-se irreparáveis as deliberações tomadas
por muitos órgãos do judiciário no sentido de assegurar essa parcela aos seus
integrantes. Só a título de exemplificação é possível citar a garantia de
parcela indenizatória de auxílio-moradia aos seguintes órgãos de cúpula do
Poder Judiciário: Supremo Tribunal
Federal (Resolução n. 413, de 01.10.2009, art. 363, I); Tribunal Superior do Trabalho (Resolução
Administrativa n. 1.341, de 01.06.2009); Superior
Tribunal de Justiça (Ata da Reunião de Conselho de Administração de
29.05.2003); e Conselho Nacional de
Justiça (Instrução Normativa n. 09, de 08.08.2012).
Da
análise dos regramentos acima é possível identificar as seguintes
características convergentes: a) as verbas não foram previstas por lei
explícita; b) as parcelas são de natureza indenizatória e são excluídas diante
a concessão de imóveis funcionais; c) os valores foram estipulados de
conformidade com os limites orçamentários de cada órgão. Observe-se, por outro
lado, que, com exceção dos integrantes do CNJ, todos os demais Ministros
beneficiários ocupam cargos vitalícios na estrutura do Poder Judiciário e, por
consequência lógica, devem fixar residência na sede dos respectivos órgãos.
O
quadro fático acima delineado atesta, de maneira insofismável, que a concessão
e o pagamento do auxílio-moradia é inerente ao exercício da judicatura,
obviamente mediante a observância das limitações e imposições orçamentárias. A
única limitação explícita para a fruição do benefício, na forma da LOMAN, é a
concessão de residência oficial para o magistrado (art. 65, II). Tal limitação
foi assimilada pelos regramentos acima citados, na medida em que cessa o
pagamento do beneficio quando concedido o uso de imóvel funcional (leia-se
residência oficial do magistrado).
Por
outro lado, como forma de se reconhecer a impossibilidade de restrição do
benefício poder-se-ia sustentar a necessidade de lei específica, conforme aparentemente exigido na LOMAN, art. 65, caput. A alegação, entretanto, não se
sustenta pelos seguintes fundamentos:
a)
Na enumeração do art. 65 da LOMAN há previsão de inúmeras vantagens, inerentes
ao exercício da judicatura, que são reguladas e adimplidas no âmbito do exercício
da autonomia administrativa dos Tribunais, como é o caso da ajuda de custo para
despesas com transporte e mudança (inciso I) e as diárias (inciso III);
b) A
LOMAN foi aprovada ainda na vigência da Constituição Federal de 1967, que não
assimilava a autonomia orçamentária do Poder Judiciário. Assim, o alvo da lei citada no caput do art. 65 era, tão-somente, a previsão da despesa, na época
de formatação e execução exclusiva do Poder Executivo;
c) A
estrutura sistêmica da LOMAN unifica o tratamento conferido às magistraturas
estadual e da União, sendo em que, em relação à justiça estadual as questões
são tratadas por meio de lei
orgânica do respectivo Estado. No caso da magistratura federal não há qualquer
ordenamento jurídico, além da LOMAN, apto ao regramento de tais questões.
Nesse
sentido a regulamentação inserida no âmbito do estatuto da magistratura é
suficiente para respaldar a concessão do benefício do auxílio-moradia. A
insistência na tese de exigência de lei específica para a concessão da parcela
indenizatória, por outro lado, não pode ser tópica ou localizada. Assim, se não
é possível implementar o benefício inserido no inciso II do art. 65 da LOMAN
dentro dos próprios lineamentos preconizados por esta Lei Complementar, também
não se viabilizaria a concretização das parcelas, igualmente indenizatórias,
preconizadas nos incisos I e III.
Um
entendimento desse jaez redundaria na impossibilidade de ressarcimento das
viagens funcionais dos magistrados e de suas mudanças nas hipóteses de promoção
ou remoção. Esse quadro feriria qualquer padrão de razoabilidade ou equidade na
aplicação das normas aplicáveis à magistratura, mas numa perspectiva
nitidamente kafkiana, estaria em
sintonia com a interpretação, vindicada por alguns, de aplicação do inciso II,
art. 65 da LOMAN apenas diante de lei específica.
Ainda
assimilando uma visão de restrição à concessão do benefício, argumentar-se-ia
que o § 3º do art. 65 da LOMAN, que delimitava critérios objetivos para a
concessão do benefício, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (Rep. 1417-7-DF – Relator Ministro Moreira Alves, DJ 15.04.1988). O
vício de inconstitucionalidade, entretanto, restringia-se aos aspectos
estritamente orçamentários, tendo em vista a majoração das vantagens funcionais
da magistratura depender de atuação direta e exclusiva do Poder Executivo, nos
termos dos arts. 13, III, IV e § 1º; 57,
II; e 65 da Constituição Federal de 1967.
Esse argumento, após a redemocratização do
nosso país e da promulgação da vigente Carta Política, não apresenta mais
consistência. Logo, o reconhecimento do auxílio-moradia enquanto parcela a ser
fruída pela magistratura não apresenta qualquer vício de inconstitucionalidade,
até porque adimplida, no plano administrativo, pelo próprio Supremo Tribunal
Federal, conforme dito anteriormente.
A
resistência na implantação do auxílio-moradia, enquanto benefício
eloquentemente assegurado no estatuto da magistratura, não é estritamente de
ordem jurídica, mas sim reflexo de um impasse político. A timidez no reconhecimento
dos benefícios, mesmo de caráter indenizatório, de forma genérica e isonômica,
é apenas um sintoma de um problema maior. Com efeito, o esfacelamento da
estrutura retributiva dos magistrados brasileiros acaba por criar discrepâncias
e divergências inaceitáveis dentro de um sistema que, por força de comando
constitucional, deve ser uno e homogêneo.
O
reconhecimento e a correção de tais discrepâncias é medida inadiável que
depende de uma atuação política, mas também jurídica. A aplicação isonômica e
razoável do estatuto da magistratura deve partir de uma autuação dos próprios
Tribunais, no exercício de sua autonomia consagrada constitucionalmente. No
caso da garantia ao auxílio-moradia, a ausência de uma posição explícita, e,
principalmente, isonômica, do Conselho Nacional de Justiça demanda providências
urgentes dos Tribunais nos estritos limites legais, constitucionais e
orçamentários. Talvez dessa maneira consigamos atingir a plenitude da
igualdade, sem qualquer separação ou segregação.
* O autor é Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região. Professor do UNIPÊ-Centro Universitário de João Pessoa e da ESMAT/13. Mestre e doutorando em direito.
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