Regime discriminatório
Há no Projeto de Lei sobre terceirização ampla
"disputa por dinheiro"
Por Germano Silveira de Siqueira
O
presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo
Cunha, patrono da inclusão em pauta
de plenário do Projeto de Lei 4.330/2004 nesta terça-feira (7/4), mesmo sem
esgotar os debates da Comissão de Constituição e Justiça da casa, onde a
matéria encontra-se pendente de parecer, minimizou as polêmicas em torno do
projeto e reduziu tudo a uma alegada disputa por dinheiro, conforme declarações
que lhe foram atribuídas pela imprensa na semana passada.
Segundo
suas observações sobre o assunto, a tal disputa estaria sediada unicamente em
interesses pela contribuição sindical, razão das resistências ao projeto por
parte de entidades de representação classista.
É bem
verdade que a estrutura sindical brasileira carece de renovação, capaz de
torná-la mais vigorosa e representativa, inclusive no que diz respeito ao
modelo de unicidade e das contribuições obrigatórias. A Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) tem posição histórica, adotada em
seus congressos, contrária a esses dois pontos.
Em 2004,
por ocasião do XII Congresso nacional (o Conamat), realizado em Campinas, foi
aprovada tese em que se assinalou : “(..) não se pode mais conceber a
manutenção da organização sindical alicerçada no conceito de categoria e de
unicidade, dependente da contribuição obrigatória de todos os trabalhadores
empregados, sem exceção, o que impede o desenvolvimento de uma efetiva
democracia participativa, através da negociação coletiva eficaz que, ao mesmo
tempo, valorize o trabalho humano e resguarde a conservação da empresa”.
Mas essa,
a bem da verdade, está longe de ser a base real da “disputa por dinheiro” a que
se refere o deputado Eduardo Cunha, em se tratando do PL 4.330.
Efetivamente,
no projeto que trata da terceirização há sim uma ampla “disputa por dinheiro”,
para ficar na contextualização proposta pelo presidente da Câmara, mas esses
ganhos não terão como beneficiários os sindicatos e os trabalhadores.
É preciso
ser claro e transparente para informar à população que o benefício econômico (o
proveito da “disputa por dinheiro”) reverterá em favor dos empresários que hoje
contratam trabalhadores diretamente e que passariam a terceirizar essa
mão-de-obra, pagando salários inferiores.
Se hoje
esses empregadores estão obrigados a conferir aos seus empregados direitos
historicamente conquistados e que visam assegurar proteção social, dignidade e
segurança no desempenho de suas atividades, se aprovado o novo projeto os
empresários estariam “livres” para promover
a redução em massa de garantias trabalhistas, passando a desembolsar muito menos com as
contratações de trabalhadores para o desempenho das funções que necessitam em
suas atividades essenciais.
Aliás,
impressiona que um quadro gravíssimo como esse não seja repudiado por alguns
parlamentares, considerando-se que a redução de vantagens e direitos dos
empregados corresponde ao mesmo tempo, note-se bem, ao acréscimo de lucro pelo
barateamento do custo da mão-de obra, aprofundando ainda mais os padrões
brasileiros de concentração de renda.
Não há
dúvidas ,portanto, sobre quem ganha e quem perde.
O PL
4.330, tal como elaborado, representa a desconstrução absoluta de toda uma base
de proteção social que foi politicamente estabelecida na ideia do estado de bem
estar social, introduzida no Brasil nos anos trinta do século passado e consolidada pelo constituinte de 1988, com
desdobramentos nos anos recentes.
Chega a
ser espantoso que parlamentares, eleitos com voto popular e dos milhões de
trabalhadores em todo o país, que dependem do mínimo para manutenção de condições dignas no cotidiano, defendam a
aprovação de um projeto que reduzirá substancial e sistemicamente o patamar
salarial da grande maioria do povo brasileiro.
Mais
instigante ainda é procurar saber por quais razões e por qual modelo se está
trocando o padrão de proteção social
trabalhista em vigor no Brasil. Será por algo parecido com o modelo chinês?
Na China,
empresas como a Dell, Hewlett-Packard, Nintendo, Nokia e Samsung, só para citar
algumas, terceirizam suas linhas produtivas em condições desumanas, segundo
periódicos insuspeitos como o The New York Times.
Há
relatos de exigência de 72 horas de trabalho semanais, bem como de explosões em
fábricas dessas empresas terceirizadas que lá atuam, além de elevados índices
de acidentes, doenças ocupacionais, e da prática comum de assédio moral
coletivo por meio da colocação de placas nos locais de trabalho com os dizeres
"Trabalhar duro no trabalho hoje ou trabalhar duro para encontrar um
emprego amanhã", de modo a incutir no trabalhador a ideia de que é melhor
trabalhar em um ambiente nefasto do que não ter ocupação alguma.
Nesse
contexto de total desprezo pelos
direitos sociais, Slavoj Zizek (in
Vivendo no Fim dos Tempos) já disse que “a China atual seria o país
capitalista ideal, em que a principal tarefa do Partido Comunista é controlar
os trabalhadores e impedir sua organização e mobilização contra a exploração".
E será esse o futuro que o legislador pátrio, por suas novas lideranças,
pretende entregar ao trabalhador brasileiro sob o falso discurso da
modernidade?
É tão
evidente o interesse econômico empresarial no bojo PL 4.330 que ideias de
emendas ao projeto, estimuladas pela Anamatra, que tinham por objetivo
equiparar direitos e salários entre terceirizados e contratados diretamente
pelas empresas tomadoras, constante de nota técnica apresentada aos
deputados, jamais foram acolhidas.
Essa
rejeição deixa clara a ideia de tratar os terceirizados como subcategorias,
discriminando-os profissional e economicamente. Do mesmo modo foi rejeitada a
ideia de responsabilidade solidária entre as empresas tomadora e prestadora de
serviços, o que só pode ser entendido como mais um benefício a quem pretende se
beneficiar economicamente da degradação dos direitos sociais.
É tão
notório esse interesse, que empresários estão sendo convocados para estar em
Brasília pela Frente Parlamentar em apoio ao PL 4.330, uma vez que as Confederações empresariais elegeram a
terceirização (e não a carga tributária?!?!) como condição imprescindível para
que as empresas possam colocar seus produtos no mercado a preço competitivo, o
que constitui a mais absoluta falácia, ou, por outra, a mais evidente prova do
real objetivo desse projeto.
Não se
pode deixar de lembrar, ainda, que enquanto
movimentos de rua no mundo trazem como uma de suas bandeiras a redução
da desigualdade, o Brasil move-se na direção oposta para abraçar uma opção de
neoliberalismo de contramão, sem atentar para os efeitos danosos e sistêmicos
que medidas dessa natureza podem acarretar.
Thomas
Piketty (O Capital no Século XXI) ao comentar os efeitos do aumento da
desigualdade social nos Estados Unidos sobre a crise de 2008 (mesmo efeito que
seria provocado pela terceirização indiscriminada no Brasil, que acentua os
fossos sociais) adverte: "Do meu ponto de vista, não resta dúvida de que o
aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro
americano. (..) A alta desigualdade teve como consequência uma quase estagnação
do poder de compra das classes populares e médias no Estados Unidos. Daí só
poderia resultar o endividamento crescente das famílias menos abastadas,
sobretudo considerando que o acesso ao crédito foi ficando cada vez mais fácil
(..)".
Nesse
sentido, não se pode deixar de dizer os apoiadores do PL 4.330 parecem ser os
mesmos que aplaudem uma espécie de "Estado assistencial para os ricos, que
ao contrário de seu homônimo para os pobres jamais teve a sua racionalidade
questionada", na bem cunhada crítica de Zygmunt Bauman (in Vida a
Crédito).
O
projeto, portanto, não deve ser apoiado nem consequentemente aprovado,
inclusive por ferir a Constituição em vários aspectos, que não são objeto desse
artigo, mas por contrariar a expectativa de progressão dos direitos sociais, de
não-regressão global dessas garantias e sobretudo da ideia de justiça, presente
em toda sociedade.
Como
adverte John Rawls (in Teoria da Justiça) “a justiça é a primeira virtude das
instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. (..) Não
importa que as leis e instituições estejam em ordem e sejam eficientes: se são
injustas devem ser reformadas ou abolidas”.
E não há
injustiça maior do que abolir garantias sociais em massa e instaurar um regime
discriminatório de condições de trabalho, quando a Constituição do país pede e
exige coisa diversa.
É por tudo isso que a Anamatra tem se
posicionado contra o PL 4.330, que enfraquece os direitos sociais, ofende a
Constituição, acentua a concentração de riqueza e produz injustiça.
Que os
senhores parlamentares tenham sabedoria e rejeitem a proposta que se opõe ao
interesse da sociedade.
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