Artigo Publicado no CONJUR:
SENSO
INCOMUM
E
a grande ideia é... extinguir a Justiça do Trabalho! Peça em 10 atos!
17
de agosto de 2017
Por
Lenio Luiz Streck
Ato
1. Quando eu tinha entre 12 e 14 anos, fui instado, por circunstâncias
terceiro-quartomundistas (quem nasce no meio do mato não tem muita escolha), a
trabalhar em oficina mecânica. Menino. Bem menino. Em vez de brincar com os
meninos da classe média que podiam se divertir (inclusive nas férias), lá
estava eu em trabalho insalubre. Sem salário fixo. Aos sábados, ao anoitecer, o
patrão decidia quanto dava de “níquel” (assim ele chamava o dinheiro) para cada
um. Não tinha ninguém por mim. Anos depois, passei no concurso para professor
municipal. Fizera 16 anos. Comecei a lecionar. Meses depois, uma bala não me
errou e me jogou seis meses no hospital, pois furara o pulmão. Simplesmente meu
contrato com a Prefeitura virou pó. E não tinha ninguém por mim. Aliás, nem o
Ministério Público foi por mim. A ação penal — que deveria ser por tentativa de
homicídio — foi posta como lesão corporal grave. Claro, prescreveu. Já em Santa
Cruz do Sul, em 1984 e 1985, vindo do mestrado, assessorei um sindicato. Vi a
importância da Justiça do Trabalho e do sindicato quando uma fábrica de
cigarros simplesmente resolveu levantar acampamento, deixando centenas de
famílias a fumar bitucas.
Ato
2. Em 1986, assumi o Ministério Público em Itaqui, na fronteira com a
Argentina. O município era tão grande que um dos lugares (Iruí) ficava a mais
de 100 km da sede. Não havia Justiça do Trabalho. Nada. Quem fazia as rescisões
era eu. Eu estava por eles. Lembro-me de um dia em que um maratimba (assim se
chamava o trabalhador fronteiriço) veio ao meu gabinete com os cálculos de
rescisão. Vi que estavam errados e mandei uma notificação para que o fazendeiro
viesse ao fórum. O maratimba lá foi e voltou com a notícia: o fazendeiro
dissera que trouxesse o promotorzinho no colo para ele conhecer. Chovia. Peguei
meu Corcel (carro e não cavalo), botei o maratimba na boleia e adentrei ao
sindicato, onde os fazendeiros tomavam mate e a fumaça do ambiente conformava
uma atmosfera bizarra. Metido que eu era, falei: “O promotorzinho está aqui, só
não está no colo. Quem pediu que eu viesse?”. Na hora, todo valente se caga
perante a autoridade (sorte minha). E acertamos tudo. Eu era a Justiça do
Trabalho. Eu era por eles.
Ato
3. Veio a Constituição e tudo se alterou. Para melhor. Hoje a Justiça do
Trabalho está informatizada, está bem aparelhada, tem funcionários e juízes
espalhados por todo o país. Como verão, seu trabalho tem assustado muita gente.
Alguns têm razão em criticar; outros, não. Também tenho criticas a Justiça do
Trabalho: o solipsismo de muitos juízes, a falta de um código processual e a
recusa em usar o novo Código de Processo Civil, o excesso de sumulas e
orientações jurisprudenciais (OJs — que valem mais do que a CF)... Mas,
esperem. Contarei o porquê de estar dizendo tudo isso.
Ato
4. Cena 1. Fico pensando naquela “chimarrião” (reunião de chimarrão) esfumaçada
de 1986 e a comparo à do 16º Congresso Brasileiro do Agronegócio, realizado em
São Paulo, onde os vilões foram a Justiça do Trabalho e, pasmem, a
Constituição. No painel principal, denominado Modernização Trabalhista (sic),
comandada, é claro, por William Waack, da, é claro, Globo News (sempre ela),
foi dito — e aplaudido — que os juízes do trabalho são “malformados” (sic) e a
legislação trabalhista é “tiranossáurica” (sic). Já os procuradores foram
definidos como “loucos” — sic — (acho que por seu trabalho legal na denúncia do
trabalho ilegal e trabalho escravo e coisas correlatas). Interessante o
agronegócio e o empresariado (mais Pazzianotto e Waack) falarem mal da
Constituição Federal. Ela, a Constituição, é dirigente quando promove a
economia-chapa-branca (extrativismo nas burras do Estado, com subsídios, etc. —
que tal o BNDES que usa dinheiro do fundo do... trabalhador — bingo!) e é maldita
(odiada) porque se atreveu a estabelecer, pasmem, direitos para os
trabalhadores. Que coisa, não? Essa Constituição...
Ato
4. Cena 2. De forma “neutra”, o âncora William Waack disse ver um país
“subjugado pela burocracia e pela legislação trabalhista” (eu poderia dizer:
país sufocado por subsídios, por empresas grandes de comunicação que estão com
grandes dívidas com o fisco e o INSS, etc — mas, deixa pra lá). Ou seja, o
Brasil vai mal porque os trabalhadores têm direitos e a Justiça do Trabalho
protege esses direitos. Bom seria que nada fosse regulado, certo? Ora, ficar
pagando 13º para empregada doméstica, horas extras para quem trabalha mais de
oito horas... isso deve ser ruim para o país... O ex-presidente do TST, Almir
Pazzianotto, foi um dos mais incisivos críticos da Justiça do Trabalho. O mote
do painel foi: a Justiça do Trabalho atravanca o agronegócio. E o resto da
economia. Solução: a Justiça do Trabalho deve acabar. Aliás, como disse o
empresário Walter Schalka, “não deveria existir”. Simples assim. Bingo.
Ato
4. Cena 3. Todos elogiaram a reforma trabalhista e lamentaram que ainda não
tenham sido extintos a Justiça do Trabalho e o próprio Ministério do Trabalho.
Ou seja: atirar a água suja fora com a criança dentro. Pazzianotto foi mais
longe, dizendo que os artigos 6º e 7º (que tratam, malditamente, dos direitos
sociais e trabalhistas) deveriam ser extirpados da Constituição Federal. Foi um
erro lá estarem, disse. Nem é necessário falar do resto, como a proposta de que
empresários deveriam apoiar a nomeação de ministros do Tribunal Superior do
Trabalho (como se hoje e sempre isso não vem sendo feito...!). Mas, enfim,
vamos comentar um pouco esses discursos pré-modernos. Antes disso: como
constitucionalista, fico impressionado com o modo inconstitucional como esse
tema tem sido tratado. Esse é o ponto. Onde fica a Constituição?
Precisamos
moralizar urgentemente esta venda de escravos![1]
Ato
5. A Justiça do Trabalho é o caos? É ela que atravanca a economia brasileira?
Em um país em que ainda existe trabalho escravo? Nosso âncora da Globo News
sabe em que país está? O ex-ministro Pazzianotto também? Ele que esteve na
presidência do TST e nada fez com relação às coisas que hoje critica. No seu
tempo, súmulas, enunciados, etc., campearam solto. Nenhum esforço para que a
lei fosse cumprida com rigor. Nenhum esforço para que a Justiça do Trabalho se
comportasse sem surpreender as partes.
Ato
6. Cena 1. A Justiça do Trabalho tem problemas? Evidentemente que tem. Por mim,
não precisaria dar personal training pra magistrados (ver aqui). Tenho sido
crítico em vários pontos. Mas daí a essa demonização vai uma distancia enorme.
Os ganhos sociais da Justiça do Trabalho superam seus equívocos. Olhemos um
pouco pelo retrovisor da história... Pensem no Brasil vivendo uma espécie de
livre regulação... A Justiça eleitoral também tem problemas, basta ver o artigo
23 da LC 64, que institucionaliza o solipsismo judicial e permite cassar
mandatos a partir de indícios e presunções.
Mas
ninguém quer extinguir a Justiça Eleitoral. O Superior Tribunal de Justiça vai
bem? Não. Então chamem o Pazzianotto e o William Waack — eles farão um projeto
de extinção daquela corte. Os tribunais estaduais vão bem? Bom, alguns levam
anos para julgar apelações (por mim, também alguns tribunais não precisavam
pagar salários ou penduricalhos de mais de R$ 500 mil (ver notícias aqui e
aqui). Mas, mesmo que a maioria ainda inverta o ônus da prova em crimes de
furto, roubo e tráfico, ainda assim não pensamos em extinguir os tribunais.
Claro, é bom não chamar o Pazzianotto e Waack para extingui-los, embora, nessa
parte da inversão do ônus da prova, ambos elogiariam. Mas, no resto, por certo,
aliados ao líder do agronegócio, acham que a Justiça Estadual também é muito
cara — logo, por que não extingui-la? Falta só a tese da extinção do STF —
provavelmente tema do próximo simpósio a ser ancorado por Waack.
Ato
6. Cena 2. Bom, há gente demais dizendo que os trabalhadores têm direitos
demais. Tem até ministro do STF (ver aqui) dizendo isso. Engraçado: olho em
volta e não vejo esses direitos “demais”. Vejo opulência, sonegação de
tributos, lei que considera mais grave furtar do que sonegar e coisas do
gênero. Alguém que vem de fora e leia essas manifestações “tipo-Pazzianotto”,
dirá: se o Brasil extinguir a CLT e a Justiça do Trabalho, vai para o primeiro
mundo. Pronto. Descobrimos o problema. A raiz está na CLT. E no modo como a
Justiça do Trabalho a aplica. Bom, pelo jeito, o inicio da profilaxia e o
grande passo para entrarmos no primeiro mundo já foi dado pela reforma
trabalhista. Eivada de inconstitucionalidades, gize-se. O Bradesco, por
exemplo, deu um imenso passo rumo à modernidade. Despediu milhares de
“colaboradores” e vai recontratá-los como pessoas jurídicas (PJ). Simples. Isso
que é bonito. Modernização: eis o lema!
Ato
6. Cena 3. Para esses setores “modernos” da economia, que acreditam que
carregam o país nas costas e que ostentam uma postura de heróis nacionais,
democracia é apenas ampliação desenfreada dos lucros. Qualquer regulamentação
das relações entre capital e trabalho sempre é vista como intervencionismo
estatal excessivo. É por isso que Pazzianotto considera a Constituição de 1988
como a pior de todas.
Ato
7. Sempre entendi que uma democracia depende de uma combinação simultânea entre
liberdades civis, políticas e sociais, sendo que a melhor Constituição para uma
comunidade política não é simplesmente resultado do que existe na cabeça de uma
única pessoa — se dependêssemos apenas de Pazzianotto e gente como Waack
estaríamos perdidos —, mas sim fruto de uma ampla pactuação entre os diversos
segmentos de uma sociedade. É por isso que considero a Constituição de 1988 a
mais democrática de toda a história constitucional. Eis o meu conservadorismo
constitucional.
Ato
8. Cena 1. Repito. Aceito análises críticas sobre a atuação da Justiça do
Trabalho. Da mesma forma que ocorre com a Justiça Comum, também me preocupam
todas as decisões discricionárias que ocorrem no âmbito da Justiça do Trabalho.
Todos sabem o quanto tenho escrito sobre isso. E dos tribunais superiores. No
entanto, também entendo ser importante que os empresários levem em consideração
os abusos praticados por empregadores contra seus funcionários. Para ilustrar
essa situação, vejamos alguns números a respeito do assunto: De 1995 a 2015,
49.816 pessoas foram libertadas da escravidão no Brasil. Algumas pessoas podem
imaginar que esse tipo de situação só ocorre nos rincões do país, onde sequer
há o que comer. Mas no estado de São Paulo, reconhecidamente uma das regiões
mais prósperas do país, no mesmo período, foram libertados 1.485 trabalhadores
(ver aqui). Recentemente, uma força-tarefa do MPT começou a investigar um
esquema ilegal de agenciamento de imigrantes para trabalho doméstico em
residências de famílias com alto poder aquisitivo. Mulheres das Filipinas,
Chipre, Hong Kong, Dubai, Cingapura e Nepal eram mantidas em condições de
escravidão, sendo que em alguns casos elas eram obrigadas a trabalhar de
domingo a domingo, das 6h às 20h (ver aqui). Sem esquecer dos bolivianos
escravos encontrados em diversas fábricas de roupas de luxo (ver aqui). Algo
que os fiscais do trabalho constantemente encontram nos porões das grandes
cidades. De fato, olhando tudo isso, precisamos moralizar urgentemente essa
exploração dos trabalhadores...
Ato
8. Cena 2. No campo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, ocorreram 61
assassinatos somente no ano de 2016, com 1.079 ocorrências de conflitos por
terra. Também foram registrados assassinatos de auditores fiscais do Ministério
do Trabalho.
Ato
8. Cena 3. Além de todos esses números, Pazzianotto, Waack e seus amigos
esquecem de mencionar que os governos vêm premiando os grandes produtores
rurais com o perdão das dívidas. E no último perdão, o desconto não foi
pequeno: R$ 10 bilhões. Para um país que se encontra numa grave crise econômica
e que precisa ajustar suas contas para melhorar sua situação fiscal, abrir mão
de R$ 10 bilhões não seria um mau negócio? Para o conjunto da comunidade
brasileira podemos dizer que sim (ver aqui).
Em
busca do tempo perdido: a volta dos “bons tempos”
Ato
9. Segundo o seminário ancorado por Waack (cujo discurso se multiplica nos
meios de comunicação cotidianamente), temos de ir em busca do tempo perdido. Em
resposta, vai aqui a minha ironia: Itaqui é que era bom. Nem Justiça do
Trabalho havia. Havia que buscar a laço algumas nesgas de direitos. Ou,
voltando um pouco, bom era no tempo de Lenio Streck como empregado de oficina
mecânica, sem qualquer documento (que, aliás, nunca foi possível obter) ou de
Lenio Streck, concursado, cujo contrato vira pó e não tem Justiça do Trabalho
por perto. É, bons tempos aqueles. Algo como a antiga propaganda do Nescafé
Casagrande, “A volta dos Bons Tempos”... (a propaganda mostra a patuleia indo
bem cedinho ao cafezal, pés descalços, tocando boi com aguilhada e o casal
branquinho-bonitinho tomando café fumegante, enquanto o locutor diz “a volta
dos bons tempos”)! Mas chegaremos lá, de novo. Com a reforma trabalhista e a
extinção da Justiça do Trabalho, sob o comando de Pazzianotto, Waack e
correlatos, viva a função social do direito. Viva o welfare state. Esses
europeus idiotas que inventaram isso se deram mal. É só olhar o lixo que é a
“questão social” na Espanha, Alemanha, França e até em Portugal... Países
miseráveis esses. Estado social... argh! Viva a modernidade.
Ato
10. Ah, ia me esquecendo. Essas teses brilhantes e progressistas podem ser
aplicadas ao processo penal. Já temos, contando os com prisão domiciliar e
tornozeleiras, um milhão de presos. Claro: a culpa disso é o excesso de
garantias. Temos só um milhão. Se tirarmos as garantias, dobramos a população
carcerária. Bingo. “A culpa é da bandidolatria que se espraia pelo país”,
dirão. Sugiro um seminário para debater isso. Tema: retirar o artigo 5º da
Constituição Federal. Extirpá-lo. Torná-lo pó. E aprovar prisão perpétua.
Chamemos os duplos de Pazzianotto. Mas, o âncora, é claro, não pode ser outro
que não ele, William Waack. Rumo à modernidade, se eles souberem o que é isso.
Paradoxalmente, sob o pretexto de modernizar, o país está se transformando em
um estado de natureza. E isso é pré-modernidade. Pobres dos pobres de
Pindorama.
[1]
A frase acima foi dita por um indignado vendedor de escravos pouco tempo antes
da abolição do trabalho servil.
Lenio
Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em
Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
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