https://www.anamatra.org.br/artigos/26045-a-va-tentativa-de-naturalizar-a-dispensa-em-massa-no-brasil
09 Janeiro 2018
Autor(a): Grijalbo Fernandes
Coutinho e Hugo Cavalcanti Melo Filho
A vã tentativa de naturalizar a dispensa em
massa no Brasil
Grijalbo Fernandes Coutinho*
Hugo Cavalcanti Melo Filho**
O blog Migalhas publicou, hoje,
matéria intitulada "TST: Presidente garante demissão coletiva sem
negociação sindical", dando conta de que o Presidente do Tribunal Superior
do Trabalho, ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, no exercício ocasional
da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, em sede de correição parcial,
"garantiu a demissão de 150 professores de uma das maiores universidades
de Porto Alegre/RS".
A correição parcial foi requerida
em face de decisão proferida por desembargadora do TRT do Rio Grande do Sul que
negara a aplicação da regra prevista no art. 477-A da CLT (introduzido na
chamada reforma trabalhista), sob os seguintes fundamentos:
“Partindo-se da premissa de que
há sim um movimento de despedida imotivada de uma coletividade, a ausência de
prévia mediação no plano da representação coletiva do Direito do Trabalho
encontra óbice na Ordem Constitucional como apontado na decisão atacada. (...)
De resto, a doutrina e jurisprudência pertinentes - a magistrada de primeiro
grau transcreve farta jurisprudência sobre a matéria - sempre entendeu pela
necessidade da intervenção sindical em se tratando de dispensas em massa,
justamente em virtude do grave prejuízo social daí decorrente. Ainda, e tal
como assentado pela magistrada de primeiro grau, os princípios constitucionais
que sempre autorizaram a adoção desse entendimento permanecem vigentes, a
despeito da regra introduzida pelo artigo 477-A da CLT alterada pela lei
13.467/17.”
Em sua decisão, o Presidente do TST
entendeu que, para impedir o empregador de utilizar o direito potestativo de
dispensa sem justa causa, “a autoridade coatora e a autoridade requerida,
contra expresso texto de lei, exigiram o que a lei expressamente dispensa, que
é a intermediação negocial do sindicato de classe para as demissões ditas de
massa”.
O presidente do Tribunal considerou
que os juízes gaúchos estavam a cercear a entidade de ensino "no
gerenciamento de seus recursos humanos, financeiros e orçamentários,
comprometendo planejamento de aulas, programas pedagógicos e sua situação
econômica”, porque impediram-na de realizar demissões nas janelas de julho e
dezembro, apenas pelo fato do número de demissões realizadas, “ao arrepio da
lei e do princípio da legalidade".
Vê-se que, para o Presidente do
TST, a dispensa de empregados é verdadeiro direito potestativo do empregador.
Filia-se à doutrina do employment at will, na linha do que se pratica nos
Estados Unidos da América, segundo a qual nada impede a dispensa do empregado,
ainda que não haja motivo, numa espécie de “denúncia vazia” do contrato de
trabalho. Por outro lado, afirma que as decisões tomadas elas instâncias
inferiores se deram ao arrepio da lei e do princípio da legalidade. Mas, na verdade,
a decisão proferida em correição parcial é que está em confronto com a
Constituição da República e com o Direito Internacional do Trabalho, como se
pretende demonstrar.
No propósito de ampliar o poder do
empregador de despedir, sem causa, os seus empregados, a Lei nº 13.467/17
equiparou, no artigo 477-A, as dispensas individuais e coletivas:
"Art. 477-A. As dispensas
imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins,
não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de
celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua
efetivação”.
Desconsiderando o fato de o artigo
7.º, inciso I, da Constituição vedar a dispensa arbitrária ou injusta, a lei
trilha o temerário caminho da inconstitucionalidade, pois, ainda que se admitia
a necessidade de regulamentação do referido inciso, não é dado ao legislador
ordinário legislar em sentido diametralmente oposto às regras constitucionais,
as quais, ainda que sejam normas de eficácia contida, não se despem de sua
eficácia imediata. Bem diferente da inexplicável omissão legislativa quanto à regulamentação
do preceptivo constitucional, por 30 anos, é a tentativa de inserir em lei
ordinária regra absolutamente colidente com o mesmo preceptivo.
De outro lado, o artigo 477-A não
resiste à aferição de compatibilidade vertical com a Convenção 158 da OIT, o
que impõe a paralisação de seus efeitos. É de registrar, com Souto Maior
(2017), que a Convenção 158, apesar de denunciada pelo Brasil no governo
Fernando Henrique Cardoso, “pode ser utilizada como fonte formal do direito do
trabalho seja por força do art. 8º, seja pela literalidade do art. 5º, § 2º, da
Constituição”. De igual modo, contraria a Convenção nª 154 da Organização
Internacional do Trabalho que determina a negociação coletiva e a participação
do sindicato em questões de interesse comum.
Por fim, o legislador, ao
introduzir na ordem jurídica a equiparação entre dispensa coletiva e dispensa
individual, não levou em conta que a dispensa coletiva é um instituto do
Direito Coletivo do Trabalho, que possui princípios, normas, institutos e instituições
totalmente diversas do Direito Individual do Trabalho. Vige neste ramo do
Direito, como objeto, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos,
e os direitos mais elevados da dignidade humana.
A presença do interesse público primário
de toda a sociedade impõe a este ramo do Direito uma proteção especial, com a
efetiva e necessária participação dos legitimados ou autores ideológicos, entre
eles, o Ministério Público do Trabalho, neste desiderato, como gestor do
microssistema de tutela coletiva e dos instrumentos de que dispõe para proteger
os direitos sociais e indisponíveis dos trabalhadores.” (SANTOS, 2017)
É bem verdade que, até aqui, o
direito trabalhista brasileiro não havia se preocupado com o tema. Para além da
proteção genérica insculpida no art. 7.º, I, da Constituição, ainda não
regulamentado, nada dispunha a ordem jurídica acerca da dispensa em massa de
empregados, diferentemente do que ocorre em outros países, especialmente da
Europa, em face da necessidade de adequação da ordem interna com a Diretiva n.
98/59/CE do Conselho da União Europeia, de 20 de julho de 1998.
Assim é que havia quem sustentasse
“que pelo fato de não existir norma expressa que limite a dispensa coletiva
esta poderia ocorrer “livremente”, pois o juiz estaria restrito a decidir
dentro da lei (e lei não existiria). Novamente o debate jurídico foi tomado
pelo debate econômico e com este se confundiu”(TEODORO e SILVA, 2009).
No final de 2008 e no início de 2009,
decisões dos Tribunais da 2.ª e da 15.ª Regiões Trabalhistas reputaram nulas
dispensas em massa então promovidas, a pretexto de dificuldades econômicas
empresariais, no auge da crise iniciada com a falência do Banco Lehman
Brothers. A decisão do TRT 15, no paradigmático caso da Embraer, foi submetida
à apreciação do Tribunal Superior do Trabalho, no qual se fixou a tese de que
não pode haver dispensa coletiva que não seja precedida de negociação
coletiva.
A publicação da Lei n.º
13.467/17, que, em seu artigo 477-A, autoriza a dispensa em massa de
trabalhadores, sem qualquer participação das entidades sindicais e sem prévia
negociação coletiva, representa, então, absurdo retrocesso.
Ora, o Direito do Trabalho
encontra-se fundado em princípios, tendo a mais absoluta compatibilidade com
toda e qualquer diretriz principiológica afirmativa dos Direitos Humanos da
classe trabalhadora, como se nota, por exemplo, da essência do princípio da
vedação do retrocesso social. A observância desse princípio pelo intérprete
preserva o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados, de
modo que esses direitos são constitucionalmente garantidos (CANOTILHO, 2003, p.
475). Por incidência desse princípio, extraem-se, também, o princípio da
progressividade social (art. 7º, I) e os princípios da proteção e da norma mais
favorável (REIS, 2010, p. 10), bem como que se afastam do ordenamento jurídico
todas e quaisquer normas violadoras da função do Direito do Trabalho
(RODRIGUEZ,1993).
A disposição do art. 477-A, a
autorizar a dispensa em massa de trabalhadores, configura explícito
rebaixamento das condições gerais de trabalho vetado pelo comando do caput do
art. 7º da Constituição da República, do qual emana o princípio da proibição do
retrocesso no âmbito das relações de trabalho.
Para além dessa barreira
constitucional, existem tantas outras como o princípio da dignidade da pessoa
humana e do valor social do trabalho como fundantes da República (art. 1º) e o
funcionamento da ordem econômica pautada pela valorização do trabalho humano e
pela redução das desigualdades sociais (art. 170, VII).
No plano internacional, os pactos
sobre Direitos Humanos – com destaque para o Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU) e para as Convenções
da OIT – repelem a possibilidade de o trabalho ser tratado como mais uma
mercadoria, bem como vedam quaisquer retrocessos sociais, como se configura a
permissão de dispensa massiva indiscriminada, sem a interveniência sindical ou
negociação coletiva prévia.
Por tudo isso, faz-se necessária a
defesa do Direito Constitucional do Trabalho, fiel às suas origens e à sua
principiologia protetiva, para afastar do mundo jurídico as interpretações
judiciais ou mudanças legislativas comprometidas com o aprofundamento das
desigualdades sociais nas relações conflituosas entre o capital e o trabalho.
Se na arena política cabe à
classe trabalhadora, organizada em sindicatos e partidos operários, derrotar a
“reforma” trabalhista, como uma das expressões ou vertentes da luta de classes
contra o despotismo do capital, sob o ângulo jurídico, a “reforma” trabalhista
deve ser enfrentada por viés de direito contra-hegemônico ao receituário
neoliberal. A Constituição de 1988 e o Direito Internacional do Trabalho
oferecem rico panorama normativo para afastar os retrocessos sociais presentes
na proposta debatida no Parlamento. Ademais, examinar o tema a partir de luzes
principiológicas inspiradoras do Direito do Trabalho e do Direito
Constitucional do Trabalho muito auxiliará na tarefa persistente de evitar a
derrocada da civilização laboral alcançada nos marcos da frágil democracia
burguesa.
Os atores responsáveis pelo
desmonte trabalhista, incluindo os agentes que deliberadamente ingressaram na
instituição com o propósito de liquidá-la por dentro, ou seja, de dizimar o
Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho, ainda que, ocasionalmente, ocupem
postos-chave na estrutura do Judiciário Trabalhista a lhes permitir decisões
como a aqui examinada, não conseguirão impedir o exercício pleno da função
jurisdicional pela magistratura do trabalho efetivamente comprometida com o
Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
CANOTILHO, José Joaquim
Gomes.Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina, 2003.
REIS, Daniela Muradas. O
princípio da vedação do retrocesso no direito do trabalho. São Paulo: LTR,
2010.
RODRIGUEZ, Américo Plá.
Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1993.
SANTOS, Enoque Ribeiro dos. A
dispensa coletiva na Lei n. 13.467/2017 da Reforma Trabalhista. Disponível em
http://genjuridico.com.br/2017/07/26/dispensa-coletiva-na-lei-n-13-4672017-da-reforma-trabalhista/.
Acesso em 15.8.17.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Os 201
ataques da “reforma” aos trabalhadores. Disponível em:
<http://www.jorgesoutomaior.com/blog/os-201-ataques-da-reforma-aos-trabalhadores>.
Acesso em: 20 jun. 2017.
TEODORO, Maria Cecília Máximo e
SILVA, Aarão Miranda.
A imprescindibilidade da
negociação coletiva nas demissões em massa e a limitação de conteúdo
constitucionalmente imposta. Disponível em
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6082.
Acesso em 15.8.17.
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