Brasil, “Campeão de ações trabalhistas”
Como se constrói uma falácia
Cássio Casagrande
25 de
Junho de 2017 - 15h17
Todos já ouviram a mesma
cantilena: O Brasil é o “campeão mundial” de ações trabalhistas, com quase
quatro milhões de reclamações ao ano, enquanto os EUA teriam apenas 75 mil.
Todos que defendem a reforma trabalhista repetem este mantra, como se ele fosse
um fato “público e notório”. Os
deputados e senadores alardeiam este dado como se fosse a mais cristalina
verdade. Até o Ministro do STF Luis Roberto Barroso entrou inadvertidamente
neste baile. Mas esta afirmação não tem
base factual alguma. Ela é resultado de uma manipulação grosseira e bizarra de
dados, como demonstrarei neste artigo.
Sempre fiquei intrigado com esse
número atribuído aos EUA. Não precisa
muita sagacidade para perceber que não faz nenhum sentido a suposta existência
de meros 75 mil processos trabalhistas anuais em um país industrial de 450
milhões de habitantes, onde prevalece uma forte cultura de litigância judicial,
um contingente enorme de advogados demandistas ávidos por honorários e uma
legislação laboral federal e estadual complexa… Quem conhece minimamente os EUA
sabe que naquele país há firmas de advocacia enormes especializadas em
employment law (direito do trabalho). Outros grandes escritórios de litigância
civil têm departamentos jurídicos próprios para atuar em controvérsias
laborais. Mas se só há 75 mil ações trabalhistas por ano nos EUA, do que estes
advogados sobrevivem? Como mantêm seus
luxuosos escritórios? Como será possível que estes advogados tenham ficado
milionários advogando em causas trabalhistas se os trabalhadores não processam
os patrões?
Vamos aos fatos, mas antes de
mais nada precisamos descobrir o seguinte: de onde afinal saiu este número
irreal de 75 mil ações trabalhista nos EUA? Se o leitor digitar em um buscador
da internet “75 mil ações trabalhistas”, encontrará uma profusão de sites
noticiosos brasileiros repetindo a mesma ladainha sobre a litigiosidade laboral
nos EUA. Mas, coisa curiosa, nenhum,
absolutamente nenhum, cita a fonte.
Com a ajuda do google, constatei
que a menção mais antiga existente sobre as tais 75 mil ações anuais
trabalhistas americanas é a de um artigo de José Pastore, publicado no
longínquo ano de 1999 (há quase vinte anos) na imprensa. Para quem não o
conhece, José Pastore é um professor da USP, sociólogo especialista em relações
do trabalho e consultor da Confederação Nacional da Indústria. É um defensor
vigoroso da desregulação do mercado de trabalho e dos interesses do patronato
em matéria trabalhista. Pois bem, o Professor Pastore, neste artigo de 1999,
lançou este dado no ar, mas um detalhe chama a atenção: naquele trabalho não há
indicação de qualquer fonte. E a partir
daí todos na grande imprensa passaram a repetir a suposta estatística, sem
perguntar-lhe a origem nem averiguar sua veracidade.
Procurei checar a informação em
toda a internet. Verifiquei todas as estatísticas judiciárias dos EUA
disponíveis. Não há nenhum dado indicando este número. A OIT não possui nenhum
estudo a respeito. Em síntese, não há em
toda a rede mundial (pelo menos em inglês, português, espanhol, francês e
italiano), um único artigo – de imprensa ou (supostamente) científico – que
indique a fonte de onde se concluiu que os EUA têm apenas 75 mil ações
trabalhistas anuais. Nada, nenhuma
referência, nenhuma indicação de fonte estatística.
Não fui somente eu quem estava
achando esta história estranha. O
competente repórter econômico Ricardo Marchesan, do UOL, resolveu investigar o
caso. Ele me telefonou, sabendo que eu
possuo um conhecimento básico acerca do funcionamento do sistema judicial americano
e do direito do trabalho daquele país. Perguntou-me se eu sabia qual a fonte
das tais 75 mil ações trabalhistas dos EUA. Disse-lhe que o único registro
existente a respeito é do artigo do Professor José Pastore. Informei-o de que
não há nenhuma estatística oficial dos EUA apontando esse número. Ele telefonou para o Professor Pastore, que
inicialmente indicou-lhe como fonte o próprio artigo que escrevera nos anos
1990. Diante da insistência de
Marchesan, após alguns dias, Pastore informou que na época combinou dados de
duas fontes: as estatísticas da Equal Employment Opportunitty Commission e da
US Courts, a Justiça Federal dos EUA.
Mistério resolvido: os dados são totalmente equivocados porque as fontes
estão erradas e incompletas. Vamos por partes.
Primeiro: a Equal Employment
Opportunitty Commission não é um órgão judicial e as reclamações ali
apresentadas não são ações judiciais.
Além disto, como diz o próprio nome, cuidam apenas de questões relativas
à discriminação no trabalho. A EEOC é
uma agência independente do poder executivo federal. Sua atividade é de law
enforcement, vale dizer, sua função essencial é promover o cumprimento da lei.
Ou seja, é uma instância administrativa e não judicial. Ela pode até celebrar acordos extrajudiciais
entre patrões e empregados, mas, repita-se, é um órgão administrativo do poder
executivo. Não exerce jurisdição. E, como já dito, cuida apenas de um aspecto
da legislação trabalhista: discriminação no trabalho; ela não examina, por
exemplo, questões de excesso de jornada, acidentes, reconhecimento de vínculo
de emprego ou planos de previdência privada vinculados ao contrato de
trabalho. Admitir estes dados como
exemplo de judicialização é um erro metodológico crasso, que meus alunos do
segundo ano de Direito não cometeriam. Seria como comparar goiabada com
feijoada. É algo tão aberrante em termos estatísticos como um pesquisador
americano usar os dados de denúncias no Ministério do Trabalho sobre
discriminação para daí tirar conclusões sobre o número de ações trabalhistas no
Brasil.
Segundo: os dados da justiça
federal dos EUA – supostamente usados pelo Professor Pastore – são
absolutamente insuficientes para se chegar a qualquer conclusão quantitativa
sobre o número de ações trabalhistas nos EUA. E é fácil compreender o porquê. Nos EUA, o trabalhador pode escolher onde
ajuizar a sua ação trabalhista, se na justiça federal ou estadual. A
competência é concorrente. A justiça federal daquele país é extremamente
restritiva (limited jurisdiction), e recebe apenas uma parte ínfima de todos os
processos ajuizados no país. Há nos EUA apenas 1.700 juízes federais e 30.000
juízes nos Estados. Em média, a Justiça Federal americana recebe apenas um
milhão e meio de processos por ano, enquanto que na Justiça dos Estados
(descontadas questões de trânsito e pequenas causas) são protocolados
anualmente 30 milhões de novos processos. Além disto, metade dos processos da
justiça federal referem-se a casos de falência (bankruptcy). Outra parte grande (aproximadamente 200 mil)
são processos criminais. Há também neste número os chamados pretrial cases,
procedimentos judiciais preliminares. Na verdade, são protocolados na justiça
federal americana pouco menos de 300 mil ações civis todos os anos, dentre as
quais estão as trabalhistas, que por variadas razões foram para esta
jurisdição. Calcula-se, conforme a fonte
acima referida, que a Justiça dos Estados reúna 15 milhões de novas ações civis
protocoladas ao ano. Ou seja, a justiça
federal detém somente 2% das ações civis ajuizadas no país (o conceito de “ação
civil” do direito americano é diferente daquele do direito romano-germânico; lá
ações civis são basicamente ações de indenização por dano contratual – contract
causes – e extracontratual – tort causes -, excluindo-se, por exemplo, direito
de família e falimentar – mas incluindo-se as trabalhistas). Então percebe-se
que os números absolutos reunidos pelo Professor Pastore teriam sido coletados
apenas neste universo de 2% de todas as ações civis ajuizadas nos EUA.
Para se ter uma ideia, somente o
judiciário estadual da California recebe anualmente quatro vezes mais processos
(6,8 milhões) do que toda a Justiça Federal dos Estados Unidos. E é justamente
na Justiça dos Estados onde está o grosso dos processos trabalhistas nos EUA. E
pesquisar a justiça estadual dos EUA não é uma tarefa nada simples. Em razão do altíssimo grau de autonomia
federativa do modelo constitucional americano, cada Estado organiza seu sistema
judiciário de forma distinta. Dentre os
50 estados americanos, não há sequer dois que tenham uma estrutura judicial
idêntica (ao contrário do que ocorre no Brasil, onde as justiças estaduais são
razoavelmente uniformes). E, pior, cada
um produz suas estatísticas judiciais de acordo com critérios metodológicos
próprios. Outra dificuldade para os fins aqui em questão: grande parte dos estados não distingue as
ações trabalhistas de outros litígios civis contratuais (contract causes) para
fins estatísticos. E, além de tudo, mais um complicador: não há um órgão
nacional oficial que sistematize e uniformize as estatísticas das justiças
estaduais (como o faz aqui o CNJ). Este, aliás, é o mesmo motivo pelo qual os
EUA têm um sistema eleitoral caótico, já que cada estado organiza as eleições
(inclusive para a Câmara dos Representantes e Senado) de forma distinta. Eu me
atreveria a dizer que nem mesmo os norte-americanos sabem com precisão o número
de ações trabalhistas ajuizadas a cada ano na justiça dos estados. O National
Center for State Courts (Centro Nacional de Cortes Estaduais, uma organização independente
e sem fins lucrativos que pesquisa o judiciário estadual dos EUA), em um dos
seus boletins, declara que “apesar da atenção da mídia e do interesse público,
os casos civis nas cortes estaduais permanecem enigmáticos e não têm sido
objeto de pesquisa ampla”.
Evidentemente, uma análise
profunda sobre ações trabalhistas em todos os estados, do Alabama ao Alaska,
demandaria muito tempo e dinheiro, pois cinquenta pesquisas diferentes teriam
que ser produzidas e depois combinadas.
Mas com algum esforço e boa-fé podemos jogar alguma luz sobre a questão.
Tentaremos estabelecer qual é o padrão de litigância trabalhista na justiça
federal e o aplicaremos à Justiça dos Estados, em face da competência
concorrente para julgar os employment cases.
Vamos lá. A Justiça Federal
norte-americana de primeira instância recebeu em 2016 o total de 291.851 ações
civis, dentre as quais as ações relativas a disputas patrão-empregado. Destas
ações civis, 32.480 são ações que no
Brasil consideraríamos “trabalhistas”, pois decorrem de questões sobre
discriminação no trabalho (envolvendo a Civil Rights Act e Americans with
Disabilities Act) e de direitos relativos a reconhecimento de vínculo de
emprego, diferenças salariais e horas extras (Federal Labor Standards Act –
FLSA) e planos de previdência privada decorrentes do contrato de trabalho
(Employment Retirement Income Security Act – ERISA).
Ou seja, 11,18% das ações civis
na Justiça Federal dos EUA são ações de natureza trabalhista. Mas, repita-se,
este é um universo de apenas 2%, porque as mesmas ações trabalhistas são
ajuizadas também na Justiça dos Estados, em razão da competência concorrente
nesta matéria. Bem, a Justiça Federal
cobre todos os Estados Unidos, de modo que, embora receba apenas uma parcela
ínfima dos processos, ela representa uma amostragem perfeita da litigância
nacional em matéria trabalhista. Assim,
projetando-se este percentual de 11,18% sobre os quinze milhões de ações civis
nas justiças estaduais, há razoável segurança para estimar que os processos trabalhistas
na Justiça dos Estados devem girar em torno de 1,7 milhão ao ano.
***
Além dos erros metodológicos
elementares e primários acima demonstrados, qualquer debate sobre ações
trabalhistas nos EUA não pode desconsiderar a realidade das ações coletivas
naquele país, como já abordamos em artigo anterior aqui publicado. Pode parecer
até que a estimativa altamente conservadora que fizemos acima (de 1,7 milhão de
ações trabalhistas anuais), demonstre que os EUA teriam muito menos litígios
trabalhistas do que o Brasil. Mas ocorre que as class actions geram um efeito
multiplicador no número de litigantes. Como se sabe, neste sistema, que vigora
desde 1938, com a introdução da federal rule 23 of civil procedure, um único
litigante pode representar em juízo o interesse de todos os demais que se
encontram sob idêntica situação de fato e de direito. Ou seja, as lesões de
massa (como tipicamente ocorre nas relações de trabalho) são tratadas
coletivamente. Quando uma empresa, com sua conduta, viola um multiplicidade de
trabalhadores (ou consumidores), basta que um deles ingresse em juízo para
defender o direito de toda a classe. De
modo que uma única ação (assim computada para fins estatísticos) envolve na
verdade centenas, milhares e não raro milhões de litigantes. E as class actions
trabalhistas são altamente utilizadas na justiça estadual. Um estudo produzido pelo Judiciário do Estado
da Califórnia no ano de 2009 revela que elas ali representam 40% das ações
coletivas ajuizadas. Portanto, quem quer de boa-fé comparar o Brasil e os EUA
em questões trabalhistas não pode simplesmente ignorar esta diferença
decorrente da ampla adoção das class actions em matéria laboral.
Para ilustrar, basta refletir
sobre o recente caso da conhecida empresa Boeing. Ela foi processada por um
empregado na Justiça Federal de Illinois, em razão de alegada má administração
dos fundos de pensão dos empregados (Lei ERISA de 1974). Durante o processo,
houve um acordo de 57 milhões de dólares, o qual será dividido entre 190 mil
trabalhadores. Ou seja, somente nesta ação estavam representados
processualmente 190 mil litigantes – mais, portanto, do que todas as supostas
75 mil ações existentes no país…
Sim, o Brasil possui também um
sistema de ações coletivas (Constituição, arts. 5o., XXI, 8o, III e Leis
7347/85 e 8078/90). Mas elas não têm a
amplitude do sistema americano. Aqui um
litigante individual não pode representar os demais, há necessidade de
intervenção de uma associação ou sindicato e a jurisprudência é extremamente
restritiva quanto ao cabimento de tais ações (vide a recente decisão do STF no
RE 612.043/PR).
***
Se alguém ainda duvida da
litigiosidade laboral nos EUA, recomendo pesquisar na internet escritórios de
advocacia norte-americanos especializados na matéria (employment ou labor
lawyers). Em seu material publicitário – como é comum por lá -, muitos destes
advogados divulgam publicamente quantos milhões de dólares já conseguiram obter
em favor de seus constituintes. Eis aqui dois breves exemplos, na California e
no Illinois, dentre milhares de advogados trabalhistas americanos bem
sucedidos. O sagaz leitor perceberá que
estes advogados não estão morrendo de fome por falta de clientes.
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Bem, se os dados sobre as
folclóricas 75 mil ações trabalhistas nos EUA foram obtidos da forma como vimos
acima, fico imaginando como não foram produzidos os dados sobre países como o
Japão, um dos quais tem sido invocado como exemplo pelos defensores da reforma
trabalhista. Qualquer estudioso de direito comparado sabe que a principal dificuldade
em comparar sistemas jurídicos é de que eles podem ser estruturados de forma
completamente distinta e isto sempre deve ser levado em conta. Também é preciso assumir que algumas
comparações são simplesmente inviáveis, pois envolvem o aspecto cultural e
sociológico do Direito e do Judiciário de cada país. Sigo, neste particular, as
lições do saudoso Professor John Merryman, da Universidade de Stanford, que no
seu clássico “A Tradição da Civil Law” lembrava que comparar tradições ou
sistemas jurídicos pode ser tão enganoso quanto determinar qual a melhor
língua, se o inglês ou o francês.
Parece-me que os “especialistas em relações de trabalho” ignoram isto.
Mas, em todo o caso, não precisamos esmiuçar as fontes dos dados por eles
utilizadas a respeito da litigiosidade laboral no Japão, Alemanha, Itália e
França, para perceber que cometem um erro que beira a má-fá: eles estão
utilizando dados absolutos. Ao dizer, por exemplo, que a Alemanha tem “apenas”
600 mil ações trabalhistas enquanto o Brasil tem 3,5 ou 4 milhões, eles estão
ignorando que qualquer dado sobre litigiosidade laboral só faz sentido se os
dados absolutos forem cotejados com a população economicamente ativa. E isto me
parece evidente: o debate quantitativo sobre litigiosidade laboral deve partir
da premissa de quantos em cada cem potenciais trabalhadores procuram o
judiciário para resolver disputas com seus patrões. Isto é de uma obviedade
total.
Pois bem, incrivelmente, nenhum
dos defensores da reforma trabalhista teve o cuidado de fazer esta conta. Não há em toda a internet brasileira qualquer
dado ponderado de ações ajuizadas em face da população adulta economicamente
ativa. Os dados mostrados pelos pesquisadores
pró-reforma são sempre absolutos.
Vamos pegar apenas o caso da
Alemanha, que tem uma média de 600 mil ações trabalhistas anuais segundo o
Professor Wolfgang Daubler, da Universidade de Bremen. Conforme dados do Banco
Mundial, a população economicamente ativa da Alemanha é de 42 milhões de habitantes,
o que dá uma taxa de litigiosidade de 1,4% (entre um e dois trabalhadores a
cada cem procuram a Justiça para processar o empregador). O Brasil, com uma população economicamente
ativa de 102,5 milhões, tem tido uma média de 3,5 milhões de processos
trabalhistas ao ano, ou seja, taxa de litigiosidade de 3,4% (entre três e
quatro trabalhadores a cada cem ajuizam ações trabalhistas). Nossa taxa é,
portanto, ligeiramente maior, sim, mas longe da aberração que se propaga. Eu
particularmente suponho que essa diferença decorra do melhor desenvolvimento
das instâncias administrativas responsáveis pelo law enforcement na Alemanha –
mas aqui estou no campo da mera especulação.
***
Tenho grande respeito intelectual
pelo trabalho acadêmico do Professor e Ministro Luis Roberto Barroso, e meus
alunos podem atestar que lhes indico seus livros na bibliografia de meu curso
de Teoria da Constituição, na UFF. Já li tudo que ele publicou e sempre ouço
com grande reverência as suas opiniões (ainda que não concorde com várias
delas). Eu diria que Luis Roberto Barroso é possivelmente o homem público mais
culto do país e uma rara inteligência. Exatamente por isso, causou-me um grande
espanto o que o Ministro disse a propósito da Reforma Trabalhista. Ele foi a
Londres participar de um seminário sobre o Brasil e declarou naquele colóquio o
seguinte despautério (transcrevo literalmente, está no You Tube, a partir do
minuto 55:08): “A gente na vida tem que trabalhar com fatos e não com escolhas
ideológicas prévias. O Brasil, sozinho, tem 98% das ações trabalhistas do
mundo.”
Bem, segundo minha calculadora,
os “fatos” apresentados pelo Ministro Barroso indicariam o seguinte: se as
quatro milhões de ações trabalhistas nacionais representam 98% do total
mundial, e se todos os demais países do mundo reunidos têm somente 2% delas,
restam apenas … 81 mil ações trabalhistas anuais! Em todo o planeta! Não existe nenhum estudo nacional ou
internacional que respalde tamanha bizarria. Com o devido respeito que merece o
Ministro e Professor Barroso, a afirmação é surreal. Observe-se que o Ministro
não estava usando uma figura de linguagem, pois disse expressamente que estava
“trabalhando com fatos”. Ele deveria,
portanto, apresentar as suas fontes científicas. Não precisa conhecer direito
comparado para perceber que o número é o mais absoluto disparate. Já vimos
acima que nos EUA as ações trabalhistas são contadas na casa do milhão – numa
estimativa conservadora e desconsiderado o efeito multiplicador das class
actions. E que, segundo o Professor da Universidade de Bremen Wolfgang Däubler,
há 600 mil ações trabalhistas anuais somente na Alemanha. A Itália teria cerca de 300 mil ações
laborais anuais de acordo com os próprios defensores da reforma. E onde estão
os dados dos países que tem órgão judiciais semelhantes à nossa Justiça do
Trabalho? Por exemplo, Austrália, Inglaterra, Suécia, África do Sul, etc, etc…
Além disso, sabemos que há
cadeiras de Direito do Trabalho nas melhores universidades do mundo da Civil
Law. Há milhares de professores que ensinam a matéria. Há associações nacionais
e internacionais de advogados trabalhistas que congregam milhares de membros.
Há publicações especializadas em direito laboral em todos esses os países de
tradição romano-germânica. Todos divulgam a farta jurisprudência das cortes
nesta questão. Porém, segundo a estatística do Ministro do STF, todos esses
profissionais estão condenados à falência e insignificância, pois, tirante o
Brasil, só são ajuizadas 81 mil ações trabalhistas anualmente em todos os cinco
continentes.
O grave é que esta assertiva do
ministro Barroso, apesar de irreal e estapafúrdia à olho nu, proferida sem
referência a base estatística ou factual alguma, foi reproduzida textualmente
pelo Senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) nas páginas 58-59 do relatório da
reforma trabalhista, que indicou como fonte … a autoridade do Ministro Barroso.
Então veja-se a que ponto chegamos: o relatório que propõe restringir a
jurisdição da Justiça do Trabalho por suposto excesso de litigância foi aprovado
na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, com base em dados manifestamente
falsos.
Sabemos que o Ministro Barroso
prima pela honestidade intelectual e que é um homem de boa vontade, que quer o
melhor para o país. Acredito que ele se deixou levar pelo oba-oba da reforma
trabalhista e citou este dado “de orelhada”, fiando-se em algum “pesquisador de
relações do trabalho”. (Se assim não foi, como ele fez uma comparação do Brasil
com o “resto do mundo”, o que me intrigaria ainda mais é saber de onde ele tirou
os dados sobre o número de ações trabalhistas ajuizadas na Tanzânia, no Sri
Lanka e na Papua Nova Guiné). Esperemos, portanto, que o Ministro Luis Roberto
Barroso envie um ofício ao Senador Ferraço, pedindo que a sua declaração
“non-sense” seja retirada do relatório da reforma.
Cássio Casagrande - Bacharel em
Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, com especialização em Direito do
Trabalho; mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio; Doutor em Ciência
Política pelo IUPERJ; Professor de Teoria da Constituição da graduação e
mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF, no qual ministra
curso de Direito Constitucional Comparado Brasil-EUA. Procurador do Ministério
Público do Trabalho no Rio de Janeiro desde 1996.
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debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a pluralidade
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