em Natividade, havia um temido proprietário de oficina mecânica; conhecido
nas redondezas por tratar seus empregados com excessivo rigor; aqui as notícias
correm; é inevitável tomar conhecimento desses boatos; tem que estar preparado
para ouvir e filtrar ou esquecer (se é que isso é possível); recebemos uma
reclamação trabalhista e agendamos audiência para a viagem seguinte; neste
intervalo, a oficiala de justiça tentou por diversas vezes notificar o tal dono
da mecânica, mas ele ofereceu resistência das mais diversas formas; numa delas,
curiosa por sinal, pulou o muro e saiu correndo para não receber o mandado; a
oficiala era muito firme, como tem que ser quem exerce este ofício; o trabalho
dela me impressionava; ela agia igual um detetive; não sossegava enquanto não
cumpria a ordem; nunca recebi uma certidão negativa dela; hoje ela está em
Brasília; é uma excelente profissional; mas voltando ao assunto; ela conseguiu
cumprir o mandado, embora o dono da mecânica tenha esbravejado de que não tinha
juiz neste mundo que fizesse ele pagar direitos àquele trabalhador (aqui omito
o palavrão que ele soltou na ocasião, mas que fazia referência à mãe do
infeliz); foram três audiências neste processo; encontros difíceis; nenhum dos
lados estava assistido por advogado; o dono da mecânica se apresentou com uma
educação ímpar; dirigia-se a mim com um português polido; tratava-me como manda
o figurino; “excelência”; “meritíssimo”; o trabalhador ficava com a cabeça
baixa e às vezes esboçava um sorriso irônico em direção ao desafeto; num dado
momento, o trabalhador olhou para mim e disse: “dotô, esse moço falou que num
tem juiz nesse mundo que faça ele me pagar”; a informação realmente batia com
as dificuldades da oficiala de justiça; olhei para o reclamante e respondi;
“não meu caro senhor, com certeza ela não diria uma coisa dessas; ele me parece
ser uma pessoa muito esclarecida, não é mesmo seu fulano? ele sabe que se for
reconhecido que ele deve, ele pagará”; o reclamado exclamou, “sim, excelência,
quem sou eu para descumprir uma ordem da justiça”; ouvimos as testemunhas dos
dois lados; proferi a sentença; resultado procedente em parte; pelo meu
julgamento, ninguém estava totalmente certo e ninguém estava totalmente errado;
aquela tentativa salomônica de dividir o perseguido ideal do justo; mas ele
pagou o que devia; do lado de fora do foro, todos aguardavam a saída do juiz;
nesta hora temos que ser bem cautelosos; não há muita segurança na região; não
há reforço policial suficiente; mas, para minha surpresa, todos queriam era apertar
a mão do juiz e falar alguma coisa; contar histórias; convidar para um almoço;
eu declinava os convites com um sorriso estampado no rosto, mas ouvia tudo o
que falavam com atenção; isso já era suficiente para deixá-los satisfeitos;
criou-se um ritual; todas as vezes que faço audiência em Natividade, fica uma
romaria na frente do foro para conversar comigo; nessa hora fico sem saber o
que sou realmente; juiz? padre? pastor? pai de santo? vidente? recordava-me
então das lições de um desembargador aposentado que sempre me alertou: “a
magistratura é um ato de amor”; e não é que ali isso fazia todo o sentido?
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