quinta-feira, 31 de outubro de 2013

APERTO DE MÃO - NARRATIVAS DE UM JUIZ ITINERANTE - POR MÁRCIO ROBERTO ANDRADE BRITO - JUIZ DO TRABALHO


APERTO DE MÃO





em Natividade, havia um temido proprietário de oficina mecânica; conhecido nas redondezas por tratar seus empregados com excessivo rigor; aqui as notícias correm; é inevitável tomar conhecimento desses boatos; tem que estar preparado para ouvir e filtrar ou esquecer (se é que isso é possível); recebemos uma reclamação trabalhista e agendamos audiência para a viagem seguinte; neste intervalo, a oficiala de justiça tentou por diversas vezes notificar o tal dono da mecânica, mas ele ofereceu resistência das mais diversas formas; numa delas, curiosa por sinal, pulou o muro e saiu correndo para não receber o mandado; a oficiala era muito firme, como tem que ser quem exerce este ofício; o trabalho dela me impressionava; ela agia igual um detetive; não sossegava enquanto não cumpria a ordem; nunca recebi uma certidão negativa dela; hoje ela está em Brasília; é uma excelente profissional; mas voltando ao assunto; ela conseguiu cumprir o mandado, embora o dono da mecânica tenha esbravejado de que não tinha juiz neste mundo que fizesse ele pagar direitos àquele trabalhador (aqui omito o palavrão que ele soltou na ocasião, mas que fazia referência à mãe do infeliz); foram três audiências neste processo; encontros difíceis; nenhum dos lados estava assistido por advogado; o dono da mecânica se apresentou com uma educação ímpar; dirigia-se a mim com um português polido; tratava-me como manda o figurino; “excelência”; “meritíssimo”; o trabalhador ficava com a cabeça baixa e às vezes esboçava um sorriso irônico em direção ao desafeto; num dado momento, o trabalhador olhou para mim e disse: “dotô, esse moço falou que num tem juiz nesse mundo que faça ele me pagar”; a informação realmente batia com as dificuldades da oficiala de justiça; olhei para o reclamante e respondi; “não meu caro senhor, com certeza ela não diria uma coisa dessas; ele me parece ser uma pessoa muito esclarecida, não é mesmo seu fulano? ele sabe que se for reconhecido que ele deve, ele pagará”; o reclamado exclamou, “sim, excelência, quem sou eu para descumprir uma ordem da justiça”; ouvimos as testemunhas dos dois lados; proferi a sentença; resultado procedente em parte; pelo meu julgamento, ninguém estava totalmente certo e ninguém estava totalmente errado; aquela tentativa salomônica de dividir o perseguido ideal do justo; mas ele pagou o que devia; do lado de fora do foro, todos aguardavam a saída do juiz; nesta hora temos que ser bem cautelosos; não há muita segurança na região; não há reforço policial suficiente; mas, para minha surpresa, todos queriam era apertar a mão do juiz e falar alguma coisa; contar histórias; convidar para um almoço; eu declinava os convites com um sorriso estampado no rosto, mas ouvia tudo o que falavam com atenção; isso já era suficiente para deixá-los satisfeitos; criou-se um ritual; todas as vezes que faço audiência em Natividade, fica uma romaria na frente do foro para conversar comigo; nessa hora fico sem saber o que sou realmente; juiz? padre? pastor? pai de santo? vidente? recordava-me então das lições de um desembargador aposentado que sempre me alertou: “a magistratura é um ato de amor”; e não é que ali isso fazia todo o sentido?

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