LOUCOS DE TODO GÊNERO
desenho de Ailly |
certo dia adentrou na sala de audiência um reclamante que demonstrava
absoluta dificuldade para se comunicar; apresentava sinais claros de confusão
mental; sua reclamação trabalhista havia sido reduzida a termo pela secretaria da
vara (atermação); os servidores já alertaram ao juiz de que o reclamante
transparecia não estar em pleno gozo de suas faculdades mentais; o diálogo em
audiência foi muito difícil; o ex-empregador não demonstrava nenhuma surpresa;
ao contrário, sorria a cada palavra do reclamante, mas não em tom de deboche;
olhava para o juiz como querendo dizer que o reclamante era “daquele jeito
mesmo”; a cidade o conhecia assim; na narrativa dos fatos, o reclamante havia
se comprometido a realizar alguns serviços na fazenda do reclamado por
empreitada e agora cobrava valores que o reclamado sustentava ter pagado; a
indignação do reclamante residia no fato de acreditar que seu trabalho valia
mais do que o acertado, do que o combinado, do que o pago; estava nítido que
ele recebera o valor prometido; mesmo assim o reclamado propôs pagar R$ 300,00
para encerrar o processo; não houve acordo; marcamos audiência de instrução; e
convoquei o MPT (Ministério Público do Trabalho); a audiência itinerante foi
inusitada; por mais que a procuradora do trabalho tentasse convencer o
reclamante de que deveria receber o valor proposto, pois a obrigação do
empregador já havia sido totalmente cumprida, o reclamante não aceitava; dizia
em alto e bom som que a procuradora e o juiz tinham sido “comprados” pelo outro
lado; perguntava com ingenuidade e uma sinceridade dilacerante à procuradora se
ela estava ali para defender ele ou o reclamado; a situação era constrangedora
e ao mesmo tempo hilária; a audiência estava sendo filmada pela TV Justiça que
realizava um documentário sobre justiça itinerante no Tocantins; não havia nenhum
indício de afronta à autoridade, apenas uma ignorância velada pela notória
confusão mental do reclamante que não possuía nenhum familiar vivo para lhe
orientar; vivia na cidade à própria sorte; seria uma crueldade propor a sua
interdição; privaríamos o ser de viver seu estado de loucura com liberdade? não
aceitou o acordo e o processo foi julgado improcedente; a cena fez brotar em
mim uma profunda reflexão sobre o ato de decidir; a função do Estado; as
imagens construídas pelo senso comum sobre corrupção no sistema judiciário; a
problemática educacional no interior do país; o tratamento do Estado frente à
saúde mental da população; e uma única certeza: há loucos de todo gênero;
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