quinta-feira, 24 de outubro de 2013

LOUCOS DE TODO GÊNERO - NARRATIVAS DE UM JUÍZO ITINERANTE Por MÁRCIO ROBERTO ANDRADE BRITO Juiz do Trabalho


LOUCOS DE TODO GÊNERO


desenho de Ailly
certo dia adentrou na sala de audiência um reclamante que demonstrava absoluta dificuldade para se comunicar; apresentava sinais claros de confusão mental; sua reclamação trabalhista havia sido reduzida a termo pela secretaria da vara (atermação); os servidores já alertaram ao juiz de que o reclamante transparecia não estar em pleno gozo de suas faculdades mentais; o diálogo em audiência foi muito difícil; o ex-empregador não demonstrava nenhuma surpresa; ao contrário, sorria a cada palavra do reclamante, mas não em tom de deboche; olhava para o juiz como querendo dizer que o reclamante era “daquele jeito mesmo”; a cidade o conhecia assim; na narrativa dos fatos, o reclamante havia se comprometido a realizar alguns serviços na fazenda do reclamado por empreitada e agora cobrava valores que o reclamado sustentava ter pagado; a indignação do reclamante residia no fato de acreditar que seu trabalho valia mais do que o acertado, do que o combinado, do que o pago; estava nítido que ele recebera o valor prometido; mesmo assim o reclamado propôs pagar R$ 300,00 para encerrar o processo; não houve acordo; marcamos audiência de instrução; e convoquei o MPT (Ministério Público do Trabalho); a audiência itinerante foi inusitada; por mais que a procuradora do trabalho tentasse convencer o reclamante de que deveria receber o valor proposto, pois a obrigação do empregador já havia sido totalmente cumprida, o reclamante não aceitava; dizia em alto e bom som que a procuradora e o juiz tinham sido “comprados” pelo outro lado; perguntava com ingenuidade e uma sinceridade dilacerante à procuradora se ela estava ali para defender ele ou o reclamado; a situação era constrangedora e ao mesmo tempo hilária; a audiência estava sendo filmada pela TV Justiça que realizava um documentário sobre justiça itinerante no Tocantins; não havia nenhum indício de afronta à autoridade, apenas uma ignorância velada pela notória confusão mental do reclamante que não possuía nenhum familiar vivo para lhe orientar; vivia na cidade à própria sorte; seria uma crueldade propor a sua interdição; privaríamos o ser de viver seu estado de loucura com liberdade? não aceitou o acordo e o processo foi julgado improcedente; a cena fez brotar em mim uma profunda reflexão sobre o ato de decidir; a função do Estado; as imagens construídas pelo senso comum sobre corrupção no sistema judiciário; a problemática educacional no interior do país; o tratamento do Estado frente à saúde mental da população; e uma única certeza: há loucos de todo gênero;

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