O Desembargador Douglas Alencar Rodrigues, da 10ª Região,
vem escrevendo artigos sobre temas jurídicos de relevante importância para
reflexões daqueles que trabalham com o direito. O artigo "DIREITOS SOCIAIS
E RETROCESSO: O CASO DO ADICIONAL DE PERICULOSIDADE DOS TRABALHADORES DO SETOR
ELÉTRICO" propõe reflexões sobre a base de cálculo do adicional de
periculosidade devido aos trabalhadores do setor elétrico, após o advento da
Lei 12.740, de 8 de dezembro de 2012, que revogou integralmente a Lei 7.369/85.
Em síntese, examina se é possível adotar a base de cálculo do referido
adicional prevista para os trabalhadores em geral, considerada a proibição
constitucional de retrocesso no campo dos direitos sociais.
O artigo já foi publicado no CONJUR e no Correio Braziliense,
Caderno Direito e justiça|CB do dia 7.10.2013
http://www.conjur.com.br/2013-out-04/douglas-alencar-lei-omite-base-calculo-adicional-periculosidade
DIREITOS SOCIAIS E RETROCESSO: O
CASO DO ADICIONAL DE PERICULOSIDADE DOS TRABALHADORES DO SETOR ELÉTRICO
Douglas Alencar Rodrigues
A Lei 7.369/85 dispôs sobre o
direito ao adicional de periculosidade para os trabalhadores do setor elétrico,
estabelecendo que o percentual correspondente incidiria sobre o salário do
empregado, ou seja, com a consideração de todos os componentes de natureza
salarial pagos ao trabalhador. Essa disposição acabou aclarada pela Súmula 191
do Tribunal Superior do Trabalho, implicando a concessão de vantagem expressiva
ao conjunto de trabalhadores que laboravam em condições de risco acentuado pela
exposição permanente à energia elétrica.
Com o advento da recente Lei
12.740, em 8 de dezembro de 2012, foi determinada a inscrição na CLT do direito
ao adicional pelo risco causado pela energia elétrica, com a consequente
revogação integral da Lei 7.369/85. Embora com propósito aparente de unificar
os diplomas normativos, a nova lei silenciou acerca da base de cálculo do
adicional, sugerindo que a vantagem deve se sujeitar ao critério de apuração do
salário base, excluídas quaisquer outras vantagens (CLT, art. 457).
Esse nova realidade normativa
silêncio tem suscitado novos debates: seria constitucional a inovação legal em
questão, sob a perspectiva do retrocesso provocado na regulação de direito
previsto no Texto Maior (CF, art. 7º, XXIII)? Essa inovação legal, com sentido
restritivo, seria aplicável aos contratos vigentes antes de seu advento?
Para responder a esses
questionamentos, é preciso recordar, antes, que a diretriz axiológica no campo
dos direitos sociais está vinculada ao norte da melhoria da condição social do
trabalhador (CF, art. 7º, “caput”), disso resultando a ineficácia das inovações
legais ou contratuais que consagrem retrocessos à margem das hipóteses pontuais
e excepcionais previstas na própria Carta Magna e que estão circunscritas ao poder
negocial coletivo (CF, art. 7º, VI, XIII e XIV).
De acordo com a história
evolutiva dos direitos humanos, que se confunde com o próprio tratamento
dispensado pelas sociedades ocidentais ao postulado da dignidade humana, os
direitos sociais trabalhistas, inscritos na segunda dimensão dos direitos
humanos, estão gravados com a nota da denominada “dupla dimensão, objetiva e
subjetiva”, que representa um dos principais avanços da teoria constitucional
contemporânea.
Sob essa perspectiva, e para além
da constatação de que os direitos humanos, em todas as suas dimensões ou
gerações, buscam assegurar os ideais da liberdade e da igualdade, valorizando a
dignidade da pessoa humana de forma ideal e abrangente, a dogmática
constitucional evoluiu para reconhecer, ao lado dos efeitos subjetivos, que
conferem aos cidadãos pretensões exercitáveis perante o Estado e particulares,
a perspectiva objetiva dos direitos humanos, segundo a qual devem ser
compreendidos como “decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da
Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem
diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos.”[1]
Além disso, a partir do instante
em que são positivados por ordens jurídicas constitucionais, os direitos
humanos acabam revestindo a nota da fundamentalidade formal, da qual derivam
consequências relevantes, entre as quais, na dicção do Professor Canotilho, a
de que passam a constituir parâmetros materiais de escolhas, decisões e ações e
controle dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais[2]
Em outras palavras, representam
os direitos humanos um conjunto de “valores objetivos básicos” que vinculam e
condicionam a ação dos poderes públicos, e não apenas traduzem garantias
direcionadas à tutela de interesses individuais. Normas definidoras de direitos
fundamentais assumem, nesse contexto, “eficácia dirigente” em relação às ações
dos poderes públicos, representando, mesmo quando apresentem conteúdo meramente
programático, limites materiais negativos para a ação conformadora a cargo dos
poderes públicos.
Dessa dimensão objetiva dos
direitos fundamentais advém a noção de que tais direitos, enquanto conjunto de
valores comunitários, devem ser interpretados não apenas sob a perspectiva do
indivíduo, mas também de toda a comunidade, na medida em que representam
valores e fins agasalhados por ela, que devem ser respeitados e realizados.
Os direitos fundamentais postos
na Constituição, enquanto conjunto de valores expressos em normas jurídicas,
igualmente representam parâmetros de valoração das leis e demais atos
normativos editados pelo Estado, inclusive sob o prisma de sua própria
constitucionalidade.
À luz dessas considerações, ganha
expressão a tese da inconstitucionalidade da Lei 12.740/2012, na medida em que,
ao revogar norma consagradora de critério benéfico e silenciar acerca da forma
de apuração da vantagem devida aos eletricitários, acabou impondo inescusável
retrocesso, contrariando o ideal de avanço e melhoria da condição social dos
trabalhadores, que vincula a ação estatal, em todas as suas esferas, no campo
dos direitos sociais trabalhistas (art. 7º, “caput”, da CF).
É preciso lembrar que “O
princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais
de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo
cidadão ou pela formação social em que ele vive.”[3]
Ainda que superado o debate sobre
a constitucionalidade da Lei 12.740/2012, não se pode concluir por sua
aplicabilidade aos contratos celebrados antes de seu advento. Afinal, no
instante em que é celebrada, a relação de emprego passa a se sujeitar ao
complexo de normas jurídicas então vigentes: normas legais imperativas - que
consagram parâmetros mínimos de proteção social (CLT, art. 9º c/c o art. 7º,
“caput”, da CF) e normas de origem autônoma produzidas pelos próprios atores sociais
- destinadas a ampliar os níveis de proteção já assegurados na legislação
estatal (art. 444 da CLT e art. 7º, XXVI, da CF).
Em outras palavras, os parâmetros
de proteção social em vigor no instante da contratação laboral configuram o
arcabouço normativo que regulará aquele negócio jurídico, ressalvadas, apenas,
insista-se, as alterações subsequentes vantajosas ao trabalhador ou ainda
aquelas que, embora prejudiciais, sejam fruto do processo negocial coletivo
ressalvado na própria Constituição da República (art. 7º, VI, XIII e XIV).
Alterações outras, que impliquem
redução dos parâmetros de proteção anteriormente estabelecidos, não podem
produzir efeitos sobre os vínculos jurídicos já celebrados, sob pena de
indisfarçável inconstitucionalidade (art. 7º, “caput”, da CF) ou mesmo
ilegalidade (CLT, art. 468), conforme a sua natureza e objeto. Não se mostra
lícito, pois, ao legislador impor redução salarial aos trabalhadores, por meio
de alteração legislativa, sob pena de afronta direta e literal ao inciso VI do
art. 7º da CF, como parece ser possível, a partir da Lei 12.740/2012.
Por imposição constitucional,
portanto, não pode o legislador reduzir ou suprimir os parâmetros de proteção
já alcançados, sob pena de produzir obra inconstitucional, cuja ineficácia deve
ser declarada pelos órgãos do Poder Judiciário.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev.
atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007. p. 147
[2] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 349.
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