Uma
reforma imprevidente
E a sociedade civil? Reagirá de algum modo? Ou engolirá
placidamente o batráquio?
03 de Fevereiro de 2017
Estamos todos à volta com a
Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016, que pretende “reformar” – pela
terceira vez em pouco menos de vinte anos – a Previdência Social no Brasil,
tanto para o setor público como para o setor privado. O Governo Federal e a
Confederação Nacional da Indústria inundam todas as mídias – desde as paredes
dos grandes aeroportos até o horário nobre das principais redes de televisão do
país – com a cantilena das necessidades e das bondades da Reforma.
Quando o brilho de uma estrela é
tão intenso, vale conferir se não se trata de um reles satélite a circundar a
nossa órbita. Nesse caso, um grande e pesado satélite, prestes a se precipitar
sobre as nossas cabeças. Vejamos.
A PEC n. 287/2016 consubstancia,
repito, a terceira grande reforma previdenciária encaminhada pelo Governo
Federal, sob os mais diversos matizes partidários, desde 1998. Sob Fernando
Henrique Cardoso (PSDB), tivemos a EC n. 20/1998. Sob Luís Inácio Lula da Silva
(PT), tivemos a EC n. 41/2013 (e também a EC n. 43/2015, oriunda da chamada
“PEC paralela”, que melhorou razoavelmente a condição dos servidores públicos
atingidos pela EC n. 41).
Por fim, sob Michel Temer (PMDB),
poderemos ter, dentre todas, a mais radical das reformas previdenciárias
pós-redemocratização, sob o manto da PEC n. 287. Outra vez, propõe-se
restringir a proteção previdenciária e assistencial que socorre a sociedade
civil – agora, porém, mais agressivamente −, aumentar a arrecadação
correspondente – nisto, porém, com medidas pífias − e culpabilizar o Estado
social pelo quadro de deterioração econômico-financeira que acomete o país,
muito menos por conta dos benefícios e serviços prestados pela Previdência
Social e muito mais em função de fatores convenientemente esquecidos, como:
(a) as incontáveis isenções,
renúncias,desvinculações e remissões fiscais em matéria de custeio
previdenciário, como outrora se deu, e.g., com a MP n. 651/2014, depois Lei n.
13.043/2014, ainda sob Dilma Roussef; ou há alguns poucos meses, com a EC n.
93/2016, já sob Temer, aumentando para 30% a margem da DRU (Desvinculação das
Receitas da União), o que significa liberar, para outros usos, praticamente um
terço de toda a “arrecadação da União
relativa às contribuições sociais” (art.
76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) – e “sem
prejuízo do pagamento das depesesas do Regime Geral da Previdência Social” (?),
o que seria um milagre. Ora, como pode o Governo Federal exigir da população que
aperte tão severamente os cintos, alegando a insuficiência de recursos para o
orçamento da Previdência Social, se ele próprio, Governo Federal, patrocina um
aumento da sua margem de manobra para aplicar em fins diversos as receitas da
Seguridade Social?
(b) os nossos monstruosos índices
de sonegação fiscal-previdenciária (calculam-se cerca de 900 bilhões de reais
acumulados de perdas nesse quesito, devidos por menos de 13 mil pessoas físicas
e jurídicas), valendo lembrar que a famigerada EC n. 95/2016 – a do “teto dos
gastos públicos” −, que praticamente engessou quaisquer investimentos
adicionais em saúde, educação ou segurança pública nos próximos vinte nos (e
acerca da qual já pende ação dreta de inconstitucionalidade, a saber, a ADI n.
5633/DF, ajuizada pela ANAMATRA, pela AJUFE e pela AMB, e distribuída à Min.ª
Rosa Weber), baseou-se na constatação de que, para este ano de 2017, haveria um
déficit de “apenas” 140 bilhões de reais;
(c) o sempre providencial oblívio
das fontes extras de receitas para a Seguridade Social que a própria
Constituição anteviu ou ensejou (por exemplo, no art. 7º, XXVII, da CF, ao
dispor sobre a proteção social dos trabalhadores urbanos e rurais em face da
automação, na forma da lei − que nunca
veio −, ou no art. 239, §4º, da CF, ao dispor sobre a “contribuição adicional
da empresa cujo índice de rotatividade da força de trabalho superar o índice
médio da rotatividade do setor, na forma estabelecida em lei” – que tampouco
veio −; ou ainda, para sair do campo previdenciário, a injustificável isenção
dos dividendos que se distribuem a sócios e acionistas no Brasil,
independentemente do montante, enquanto qualquer cidadão cujo salário supere a
R$ 1.903,98 terá de recolher IRPF.
É, ademais, curiosa – para não
dizer cruel − a insistência do establishment em reformas desta natureza. Esse
mesmo receituário já foi aplicado, sem sucesso, nas reformas anteriores. Mais
uma vez, fará pouco mais que incrementar as taxas nacionais de empobrecimento
populacional e precarizar carreiras públicas e de Estado. E o suposto déficit
da Previdência Social seguirá se agravando.
Suposto?
Essa é uma longa discussão. O
fato é que não há unanimidade quanto à tese de que o nosso atual modelo
previdenciário seja irremediavelmente deficitário. Ao revés, há estudos
importantes revelando que, no ano de 2015, o somatório das renúncias fiscais,
desonerações e desvinculações de receitas patrocinadas pelos próprios poderes
constituídos correspondeu a aproximadamente 50% do alegado déficit, sendo certo
que, nos últimos anos, o total de renúncias previdenciárias chegou ao
impressionante valor de R$ 145,1 bilhões. Não bastasse, esse quadro é agravado,
como visto acima, pela ineficiência na realização da dívida ativa
previdenciária; essa realização representou, em 2015, não mais que 0,32% da
dívida executável (R$ 1,1 bilhão arrecadado, contra um estoque de R$ 350
bilhões). Ademais, e mais importante, a própria conta que o governo federal
realiza seria historicamente equivocada. É que, pelo modelo constitucional de
Seguridade Social (art. 203/CF), haveria que se acrescer, nas entradas, os
recursos arrecadados com as receitas sobre prognósticos (loterias), a COFINS, a
CSLL e o PIS/PASEP. Nesse orçamento único (art. 165, §5º, III, CF), apenas em
2014 o superávit seria de R$ 53 bilhões de reais. O Governo considera, no
entanto, apenas as receitas do artigo 195, I, “a” (contribuições do empregador,
empresa e entidade equiparada sobre a folha de salários e demais rendimentos do
trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, a pessoa física) e do artigo
195, II (contribuições do trabalhador e demais segurados da previdência
social), ambos da Constituição. Noutras palavras, para calcular o seu déficit,
calcula basicamente o que integra o fundo do art. 205/CF, e não todas as entradas
constitucionalmente destinadas à Seguridade Social. E, no Brasil, o sistema é
uno, de seguridade social, envolvendo previdência social, assistência social e
saúde. E não somente de previdência.
É verdade, e releva dizer, que,
mesmo nesse cálculo mais “panorâmico”, a envolver todas as receitas e despesas
próprias da Seguridade Social − como quis o constituinte originário −, o
superávit vem caindo. Mesmo por essa via, portanto, teremos provavelmente de
acusar défices nos próximos anos. Mas, por essa perspectiva, o quadro é bem
mais ameno que aquele pintado pela propaganda oficial; hoje, ainda teríamos
superávit. E, por consequência, o remédio não precisaria ser tão amargo. Como,
de fato, não precisa. Nem de direito.
E o amargor da PEC n. 287/2016
vem forte, à primeira leitura. Vem a cavalo.
Desconhece-se a condição especial
da mulher no mercado de trabalho, igualando a idade mínima para aposentadoria
em 65 anos, entre homens e mulheres. Ora, os dados do IDG-PNUD (Índice de
Desiguladade de Gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
ainda demonstravam, para o Brasil dos últimos anos, haver ainda uma profunda
desigualdade de gênero no Brasil, com reflexos inegáveis sobre o mercado de trabalho;
e, a par disso, é ainda da “cultura” machista brasileira a ideia da
“mulher-mantenedora” (e do “homem-provedor”), restando-lhe amiúde os serviços
domésticos e uma recorrente dupla – ou tripla – jornada. Reduzir drasticamente
o valor das pensões, já restringidas por ocasião da EC n. 41/2003, inadmitindo
a acumulação com aposentadorias.
Criam-se condições draconianas
para que o cidadão possa obter a melhor condição previdenciária. Assim, por
exemplo, exige-se que, para receber proventos de aposentadoria no valor máximo
(“teto”) aos 65 anos, os segurados comecem a trabalhar aos 16 anos (para
contribuir por 49 anos). Essa medida é uma flagrante política de despriorização
da educação e de desmobilização de jovens e adolescentes regularmente matriculados
nas escolas, especialmente no campo. E, não por outra razão, já há quem apelide
essa PEC n. 287/2016 de “PEC do caixão”.
Altera-se a base de cálculo dos
benefícios para considerar toda a vida contributiva do segurado (inclusive a
porção equivalente a 20% das menores contribuições, que hoje são descartadas no
cálculo). Com isso, reduz-se o valor médio dos benefícios, até mesmo para quem
já está integrado ao Regime Geral de Previdência Social e aos vários Regimes
Próprios de Previdência Social (serviço público), com impactos econômicos
relevantes para o país, especialmente nos municípios de pequeno porte, cuja
economia não raro se alimenta com a demanda gerada por tais benefícios. O mesmo
se diga das reduções que a PEC n. 287/2016 imporá às pensões por morte, como à
própria proibição de que se acumulem aposentadorias e pensões, conquanto muitos
servidores públicos paguem por ambas as coisas (e, então, estaremos falando em
genuíno confisco). São, a rigor, medidas recessivas.
Especificamente em relação aos Regimes
Próprios de Previdência Social, todos aqueles que até agora anda têm
assegurados a paridade e a integralidade dos vencimentos ao tempo da
aposentadoria perderão essa garantia, da noite para o dia, desde que não
contem, ao tempo da promulgação da PEC n. 287/2016, com 45/50 anos (se
mulher/homem) ou mais. E mesmo em relação aos servidores que já não têm tais
garantias, integrando-se ao novo regime implementado com a Lei n. 12.618/2012
(das FUNPRESPs), haverá potenciais prejuízos, na medida em que esses fundos
perdem o seu caráter público com o texto proposto. Caminhamos para a
privatização previdenciária chilena. E se desfere um duríssimo golpe no
princípio da confiança, jogando pá-de-cal sobre todos os acordos de transição
encetados pelos governos anteriores (ECs ns. 20/1998, 41/2003 e 47/2005). Mais
que isso, agride-se a própria isonomia, princípio basilar da Constituição da
República (art. 5º, caput, CF), porque indivíduos com o mesmo tempo de
contribuição e com o mesmo tempo de exercício efetivo no serviço público, no
mesmo cargo e na mesma função, terão tratamentos diversos, apenas porque têm
idades diferentes.
São, para mais, inúmeras as
evidências de que a PEC n. 287/2016 promoverá patente retrocesso social, sem
qualquer contrapartida, a despeito dos compromissos assumidos pelo Brasil
perante a comunidade internacional (art. 26 da Convenção Americana de Direitos
Humanos).
******
E a sociedade civil? Reagirá de
algum modo? Ou engolirá placidamente o batráquio?
No dia 02/02, de algarismos quase
cabalísticos, ouviu-se a primeira grita pública organizada. Uma contundente
nota contrária a essa “nova” Reforma da Previdência foi publicada pelas mais
destacadas entidades representativas das carreiras públicas do país, como a AMB
(Associação dos Magistrados Brasileiros), a ANAMATRA (Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho), a ANFIP (Associação Nacional dos Auditores
Fiscais da Fazenda Nacional), a CONAMP (Associação Nacional dos Membros do
Ministério Público), a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da
República), a ANPT (Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho) e a ANMPM
(Associação Nacional dos Membros do Ministério Público Militar), além de
importantes organizações da sociedade civil, como a ATUAS (Associação Nacional
dos Atuários) e a Auditoria Cidadã da Dívida. Ao mesmo tempo, preparam dia de
protesto para o dia 15/2.
Também nesta semana, a Ordem dos
Advogados do Brasil, reunida na sede do seu Conselho Federal com diversas
entidades da sociedade civil organizada,
elaborou uma nota pública a propósito da PEC n. 287/2016, acidamente
crítica. Não é preciso lembrar o papel histórico da OAB na defesa das
liberdades públicas.
E, no mesmo encalço – para
ficarmos por aqui −, as principais centrais sindicais de trabalhadores preparam
não apenas a publicação de um manifesto de repúdio à PEC n. 287/2016, mas um
dia nacional de paralisação, à maneira das “greves gerais”, para protestar
contra a malsinada reforma.
Diante desse quadro de múltiplas
insurgências, querido leitor, a pergunta que remanesce é: estamos todos
errados?
Se estivermos, a História nos
julgará. Ou ao menos nos reservará um “pito”.
Se não estivermos, julgados serão
os “heróis” dessa kafkiana reforma que, para − supostamente − preservar uma
edificação em vias de ruir ante o peso demasiado do que se construiu, passa a deitar fora o telhado e demolir os
muros dos cômodos. Ao final, sim, restará a edificação, ou o seu esqueleto, de
pé. Mas o seu interior será praticamente inabitável. E os seus alicerces, no
final das contas, continuarão incapazes de suportar maior peso. More-se em
outros sítios, ora bolas.
Razoabilidade não é uma virtude
desses tempos líquidos (valendo a menção como nossa singela homenagem ao grande
Zigmund Bauman, morto no último dia 09/01). Mas pertinácia talvez seja.
É da mitologia grega, na ordem
proposta por Pseudo-Apolodoro (nome hoje dado ao autor da Biblioteca, que no
século I ou II d.C. reuniu diversos narrativas mitológicas esparsas), que, no
seu terceiro trabalho, Hércules alcançou e dominou a corça de cerínia, animal
lendário dotado de chifres de ouro, pés de bronze e capaz de correr em
incríveis velocidades, sem jamais se exaurir. Narra a lenda que Hércules a
perseguiu por um ano inteiro, até finalmente a fatigar; então, alvejou-a com
uma flecha, ferindo-a levamente, pois deveria levá-la viva a Eristeus.
Será assim, caro leitor, com a
Reforma da Previdência. A propaganda do Governo apresenta-a reluzente e bela,
qual ouro, portadora de todas as esperanças para as futuras gerações. Seus
fundamentos e razões, porém, são bem menos valiosas do que se divulga ser.
Seria mesmo melhor dizer que seus pés não são de bronze; são, talvez, de barro,
qual o gigante sonhado por Nabucodonosor, rei da Babilônia. Por outro
lado, a PEC n. 287/2016, em uma Câmara
presidida por Rodrigo Maia (DEM-RJ), possivelmente “correrá” com velocidade
simbolicamente superior à de qualquer corsa, real ou mítica. Sem maior diálogo
ou reflexão, embora ainda penda, no Tribunal de Contas da União, relatório
final sobre a real situação das contas da Previdência Social no país (como
determinado, em 16/01., pelo Ministro Raimundo Carreiro, atual Presidente do
TCU). Não seria, nos lindes do razoável, o caso de aguardar?…
Dirão que não. “O país tem
pressa”.
Aos que discordam desse modelo de
previdência mínima – quase imprevidente −, restará a tenacidade. Perseverar na
difícil tentativa de conter a “corsa” em sua carreira desabalada. À maneira de
Hércules… Mas ouvindo, de todos os cantos da rosa-dos-ventos, acusações de
obscurantismo.
O que assusta mesmo, amigo leitor
− muito mais que a corça de cerínia, o gigante de Nabucodonosor ou o
bicho-papão −, é perceber que, nos dias correntes, fala-se muito de “futuro”,
mas se olha mesmo é para o retrovisor. Bem, já falamos disto aqui.
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Que tal a coluna? Há algum tema
do Direito, da Política ou da Economia que pareça merecer um olhar “diferente”?
Sugira-nos. O e-mail está abaixo. Na quinzena que vem: ativismo judicial. Que
bicho é este? Domestica-se?
Guilherme Guimarães Feliciano -
Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do
Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em
Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP, diluvius@icloud.com