domingo, 19 de fevereiro de 2017

COLUNA "JUÍZO DE VALOR" - JOTA - "ATIVISMO JUDICIAL: ESSE BICHO MORDE?" - JUIZ GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO

Ativismo judicial: esse bicho morde?

A Magistratura precisa do ser humano? Ou, mais, ela deve precisar?


Guilherme Guimarães Feliciano
17 de Fevereiro de 2017 - 20h15





Na quinta-feira (16/02) realizou-se na Câmara dos Deputados a primeira audiência pública acerca do PL n. 6.787/2016, que trata da reforma trabalhista (já examinamos algo dela nesta coluna: “‘Novidades’ da Reforma Trabalhista”). Na presença do relator, o Deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, criticou acidamente a jurisprudência “insegura” da Justiça do Trabalho, às raias da inconsequência, e enalteceu a importância do projeto, apto, segundo S.Ex.ª, a reduzir os excessos de “ativismo judicial”. Encerrou sintetizando o seu pensamento com a seguinte frase: “Para um Brasil maior, um Estado menor”. Noutra ocasião, o Presidente do TST já havia dito, a respeito da corrente que congrega magistrados críticos à reforma trabalhista, que “o juiz tem de ter o juízo da consequência”; e que, sendo “ativista” – “tem muitos colegas meus que entendem que a Justiça tem de resolver todos os problemas” −, o juiz “acaba mais desestruturando a economia do que ajudando”.

Mas afinal, o que é esse tal de “ativismo judicial”, caro leitor? Ele é realmente uma distorção do sistema? Um mal necessário? Ou necessariamente um mal? Morde ou engorda?

Vamos por partes.

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(...)




Como dissemos outrora, já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado do texto constitucional. Manda a boa hermenêutica contemporânea que se interpretem as leis conforme a Constituição; não o contrário. Eis aqui, afinal, o princípio da supremacia da Constituição, tão referido e enaltecido desde 1803, com a conhecida sentença do juiz MARSHALL no caso Marbury x Madison. Se a lei é contrária à Constituição, deve ser expungida do sistema; e, se a lei admite variadas interpretações, deve-se optar pela interpretação mais consentânea com a vontade da Constituição; se a lei é lacunosa, enfim, deve-se completá-la com os princípios constitucionais. Não por outra razão, aliás, todo juiz, quando toma posse de seu cargo, jura cumprir a Constituição e as leis. Não será à toa a precedência da lei maior…

Isso tudo é “ativismo”? Não sei. Depende do que se entenda por ativismo. Se for, o Supremo Tribunal Federal é quem mais o pratica: basta ver suas decisões em tema de aborto de feto anencefálico (STF, ADPF n. 54/DF), delimitação de terras indígenas (STF, Petição n. 3.388/RR), experimentação com células-tronco embrionárias (STF, ADI n. 3510/DF), uso de  algemas (STF, Súmula Vinculante n. 11), união homoaetiva (STF, ADI n. 4277/DF, ADPF n.132/DF), aviso prévio proporcional (STF, MI ns. 943, 1010, 1074 e 1090 − essas interrompidas pela edição da Lei n. 12.506/2011) etc. Tudo a partir do texto constitucional, “completando” ou mesmo “corrigindo” os textos legais. Anda mal? Penso que não.

A decisão judicial não se calcula, prolata-se. Talvez se aproxime mais de um poema, em que se busca a melhor harmonia entre a linguagem e o sentimento profundo que se quer expressar, do que de uma equação aritmética, que tende a ser tão exata quanto fria. A sentença judicial exige, por evidente, imenso domínio técnico dos pressupostos do sistema jurídico e de todos os seus instrumentos de decisão (princípios, regras, institutos); mas também exige elevada sensibilidade. E o que o Magistrado tem a oferecer, como ser humano que é, é sobretudo a sua sensibilidade. O compêndio objetivo da totalidade das informações do direito objetivo e de todas as suas combinações possíveis poderão ser um dia – se é que já não são – operados a partir de um software. Não estamos realmente longe disto. Então, a verdadeira pergunta a se fazer é: a Magistratura precisa do ser humano? Ou, mais, ela deve precisar?


(...)

Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP, diluvius@icloud.com

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