Reforma Trabalhista: por detrás do jogo de
espelhos
O que
aconteceu em outros países que adotaram iniciativas menos radicais que o
Brasil?
Guilherme Guimarães Feliciano
Germano Silveira de Siqueira
“Triste figura, a daqueles que
vivem como num jogo de espelhos em que só eles se veem reflectidos”
(Pedro CHAGAS FREITAS, 1979-__).
Como você já sabe, caro leitor,
foi sancionada pelo presidente Michel Temer, no último dia 13 de junho, a Lei
n. 13.467, que consagra a chamada reforma trabalhista brasileira. Era, na
origem, um projeto de lei que pretendia alterar e introduzir alguns poucos
artigos na CLT, mas já com gravidade bastante para incorporar ao ordenamento
jurídico o chamado “negociado sobre o legislado”. Já então era perigosa: na
atual moldura sindical brasileira, sem antes se revisar a lei de greve (Lei n.
7.713/1989) e promover uma reforma sindical ampla, que fortaleça e confira
maior representatividade aos sindicatos, tal reforma significaria ─ como
significará ─ simplesmente chancelar, sem maiores constrangimentos, a
celebração de acordos em massa, não raro por sindicatos “pelegos”, meramente
cartoriais, com a única finalidade de reduzir direitos mínimos assegurados em
lei. Os Estados Unidos da América bem conhecem a realidade dos “yellow unions”
(= sindicatos amarelos)… In verbis:
“Company or ‘yellow’ union is a
worker organization which is dominated or influenced by an employer, and is
therefore not an independent trade union. Company unions are contrary to
international labour law (see ILO Convention 98, article 2). They were outlawed
in the United States by the 1935 National Labor Relations Act §8(a)(2), due to
their use as agents for interference with independent unions. Company unions
persist in many countries, particularly with authoritarian governments.”[1]
Em bom português (tradução
livre):
“Um sindicato de empresa ou
“amarelo” é uma organização de trabalhadores dominada ou influenciada por um
empregador e, por conseguinte, não é um sindicato independente. Os sindicatos
de empresas contrariam o direito internacional do trabalho (v. Convenção 98 da
OIT, artigo 2º). Eles foram proibidos nos Estados Unidos pela Lei Nacional de
Relações de Trabalho de 1935 ─ §8 (a) (2) ─, devido ao seu uso como agentes que
interferem com [a atuação de] sindicatos independentes.Os sindicatos de
empresas persistem em muitos países, particularmente onde há governos
autoritários”.
Qualquer semelhança com a sua
realidade, querido leitor, não será mera coincidência. Há muitos sindicatos
“amarelos” no Brasil. A Lei n. 13.467/2017 não os levou em consideração.
Mas a reforma trabalhista foi
além. A partir do relatório do Deputado Rogério Marinho foram propostas e
acolhidas quase duzentas mudanças na CLT, desta feita com o ânimo de alterar
completamente o eixo lógico e axiológico da Consolidação, interferindo com a
própria principiologia do Direito do Trabalho. Disso já falamos em outras
colunas. E, entre os mecanismos engendrados para instrumentalizar a aprovação
dessa matéria ─ como, p. ex., liberação de emendas parlamentares (Ricardo
Ferraço foi o relator da reforma trabalhista na Comissão de Assuntos Sociais e
recebeu R$ 7,6 milhões nos meses seguintes ao seu relatório com parecer
favorável[2]) ─, os segmentos interessados valeram-se do que Saul Alinsky
identificaria como uma de suas “táticas de confronto”, provavelmente à altura
da 13ª regra: “Escolha o alvo, congele-o e polarize-o”[3]. Pois bem: o alvo escolhido foi a Justiça do
Trabalho. Eis a “bola da vez”, o novo objeto do discurso apocalíptico. Discurso
que, a propósito, tem animado inclusive uma série de “advertências” gestadas
para intimidar juízes do Trabalho, dentro e fora da instituição,
constrangendo-o no seu mister constitucional de interpretar/aplicar o “novo”
Direito do Trabalho, tal como vazado na Lei n. 13.467/2017. “Aplique o texto e
não o interprete”, ouve-se aqui e acolá. Como se isto fosse possível.
A propaganda baseada nas falácias
chegou a ludibriar inclusive elevadas autoridades judiciais da República, como
p. ex. o Ministro Luís Roberto Barroso que, em importante pronunciamento que
fez por ocasião do Brazil Forum UK 2017 (tradicional evento realizado pela
London School of Economics, com pensadores brasileiros e estrangeiros, na
Universidade de Oxford), ao discorrer sobre a realidade do trabalho ─ e da
instituição judiciária que lida com esse tema ─ no Brasil, afirmou que:
a) a Justiça do Trabalho alberga
98% de todas as demandas processuais trabalhistas do planeta; e que
b) o Citibank estaria deixando a
operação de varejo no Brasil em razão dos “transtornos” causados pela
legislação trabalhista ou pela Justiça do Trabalho.
Duas inverdades absolutas. Mais
que imprecisas, infundadas. Para mais, ilações profundamente injustas, se
considerarmos qual é o papel do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho em
um dos países mais desiguais do planeta; e se considerarmos que, a partir de
falácias como essa, criou-se o ambiente para uma reforma trabalhista radical e
desequilibrada, redutora de garantias conquistadas ao longo de quase um século,
conquanto o país seja signatário do Pacto de San José da Costa Rica (tendo se
comprometido, nos termos do art. 26, a
“adotar providências […] a fim de conseguir progressivamente a plena
efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre
educação, ciência e cultura, […] na medida dos recursos disponíveis, por via
legislativa ou por outros meios apropriados”… [g.n.]).
Façamos, pois, uma breve
desconstrução de tais dados. Outros já a fizeram, inclusive à época.
Infelizmente, sem a penetração suficiente para fazer repensar a reforma (ao
menos quanto a este “fundamento”). Então, convirá sempre insistir.
A Justiça do Trabalho albergaria
98% de todas as ações trabalhistas do mundo? Não, amigo leitor. Não é verdade.
A Justiça do Trabalho brasileira
tem, entre processos novos e pendentes, algo em torno de 7,5 milhões de
processos para resolver; e este é todo seu acervo. Atente para o dado. Noutro
dia, halterofilistas da desinformação afirmavam, sem maior constrangimento, que
a Justiça do Trabalho respondia, sozinha, por 100 milhões de processos no
Brasil… Absolutamente mendaz.
Observe que, tomando em conta o
número de 7,5 milhões e a fictícia marca dos 98% referida pelo Min. Barroso,
isso equivaleria a dizer que o resto do mundo, responsável pelos outros 2% de
demandas trabalhistas (= 100% – 98% = 2%, com o perdão da minúcia),
responderiam por aproximadamente 160.000 ações trabalhistas… Ou seja, pelos
dados em questão, haveria apenas 160.000 ações trabalhistas em todo o mundo
restante (que, se divididas pelos outros 192 países, resultariam em uma média
de 833 processos anuais por cada; ou, se dividíssemos esse suposto acervo
apenas pelos 34 países que integram a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico – OCDE, ficaríamos com a irrisória quantidade de
4.705 processos/ano por cada dos países integrantes dessa Organização, o que é
obviamente irreal.
Com efeito, penas nos Estados
Unidos da América, “há razoável segurança para estimar que os processos trabalhistas
na Justiça dos Estados devem girar em torno de 1,7 milhão ao ano”[4]; e estamos
falando apenas dos Estados da União, sem computar as ações na Justiça Federal,
de menor monta. Do mesmo modo, são 600 mil ações trabalhistas ao ano na
Alemanha. Em Portugal, no ano de 2015, o número de processos novos nos
tribunais do trabalho, em primeira instância, foi de 44.225, sendo o valor mais
baixo da atual série estatística (iniciada em 1993)[5]; e, ainda assim, muito
superior a qualquer uma daquelas “médias” resultantes.
Tudo a demonstrar que o
percentual alarmista de 98% das demandas trabalhistas mundiais concentradas no
Brasil é falso e inverossímil. Não se ignora, é claro, que a litigiosidade é
elevada, inclusive porque a Justiça do Trabalho brasileira é usualmente
utilizada para postergar a implementação de direitos sociais “stricto sensu”, o
que se associa à própria cultura de sonegação que informa certos segmentos do
patronato (consubstanciando-se em frases como a célebre “vá procurar seus
direitos”). Mas nada próximo do que constou de seu recente libelo acusatório.
Aliás, vale registrar que mais de
50% dos pedidos levados à Justiça do Trabalho dizem respeito apenas ao não
pagamento de direitos rescisórios, ou seja, aqueles direitos básicos a que
todos os trabalhadores fazem jus quando são dispensados (saldo salarial, aviso
prévio, 13º salário, férias mais 1/3, FGTS mais 40%, seguro-desemprego).
Sonegar tais direitos é tão inaceitável quanto alguém servir-se em um
restaurante, fartar-se ao bel prazer, encerrar o serviço, levantar-se com a
família sem pagar a conta e por fim dizer ao dono do estabelecimento que, se
acaso quiser ver-se quitado, “procure os seus direitos” perante a justiça comum
(na expectativa de, adiante, pagar apenas a metade ─ ou quiçá 1/3 ─ do preço de
cardápio, se possível em duas ou três parcelas, em um amistoso acordo
judicial). Parece justo, leitor? Porque, se não for justo para com um honesto
comerciante, não o será tampouco para com um honesto trabalhador.
A alta litigiosidade, ademais,
não e idiossincrasia da Justiça do Trabalho. Basta ver que, nas Justiças
estaduais, o número de ações em tramitação sobe para 80 milhões de processos,
enquanto que, na Justiça Federal, tal quantitativo é da ordem de 11 milhões.
Interessaria discutir, outrossim,
quem litiga, em paralelo ao quê se litiga. De acordo com o relatório do
Conselho Nacional de Justiça de 2013[6], os Bancos (com 38,14%) foram os
indicados como os maiores litigantes em todo o Poder Judiciário (ora como
autores, ora sobretudo como réus) , figurando também com esse perfil nos
litígios perante a Justiça do Trabalho (20% da demanda). À frente da lista,
nesse setor, estavam a Caixa Econômica Federal (5,29%), o Banco do Brasil
(4,82%), o Itaú (3,61%), o Santander (2,90%), o Banco Itaú S/A (2,89%) e o
Unibanco (0,72%). Se observamos especificamente os dados da Justiça do
Trabalho[7] para 2017, veremos que entre os quarenta maiores litigantes, de
acordo com os dados do Cadastro Nacional de Devedores Trabalhistas (CNDT),
estão o Banco do Brasil (18º) e a Caixa Econômica Federal (32º).
Mas, por falar em bancos,
tratemos da segunda falácia.
O Citibank deixou o país ─ ou
estaria a deixá-lo ─ por causa da Justiça do Trabalho? Não.
A bem da verdade, a decisão de
venda de sua operação de varejo no Brasil nada tem a ver com causas
trabalhistas. Mesmo com clientela elitizada em um país pobre e desigual, o
Citibank “teve lucro líquido de R$ 958,163 milhões em suas operações no Brasil
em 2016, o que representa um aumento de 7,2% em relação ao ano anterior”[8]. A
rigor, já no dia 24/3/2016, no Caderno de Economia do jornal “O Estado de São
Paulo”, uma manchete anunciava que, “[à] venda no Brasil, lucro do Citi salta
mais de 600% em 2015” , e o texto a seguir dizia que, “[n]a contramão do
mercado, subsidiária do banco americano lucrou R$ 894,2 milhões no ano passado
com a diminuição das provisões contra calote”. E dizia mais, que a “operação de
varejo está à venda juntamente com as unidades da Argentina e da Colômbia”. À
altura, a Argentina já navegava sob ventos neoliberais, com MAURÍCIO MACRI
(desde 12/2015). Ainda assim, o Citi a incluiu no “pacote”.
Bem se vê, ademais, que o Citi
experimentava, no Brasil, boa lucratividade por dois anos seguidos. Sua
decisão, porém, era parte de uma estratégia maior, que envolvia mais alguns
países e levava em conta outros inúmeros fatores[9]. Nenhum deles,
aparentemente, associado à Justiça do Trabalho.
Houvesse quaisquer dúvidas,
bastaria ver o “Diário de Pernambuco” de 16/7/2015, que já dava conta desses
outros problemas, todos distantes da Justiça do Trabalho (porque ligados muito
especialmente à sua clientela, a apresentar percentual de inadimplência que a
instituição não admitia). Dizia a matéria:
“O Citibank reduziu as operações
de crédito no Brasil no segundo trimestre, em meio a um aumento da
inadimplência. (…) Ao mesmo tempo, os calotes, considerando os atrasos acima de
90 dias, subiram de 1,9% para 2,4%. O Citi, terceiro maior banco dos Estados
Unidos, divulgou nesta quinta-feira, 16, seus resultados trimestrais. A
instituição não informa outros números do Brasil, onde reestruturou sua
operação de varejo recentemente”.
Logo, a afirmativa de que o
Citibank foi “escorraçado” do Brasil pela Justiça do Trabalho ou pela
legislação trabalhista vigente é uma afirmação rigorosamente falsa. Nada mais
do que isto.
Dito isto, sobrevém uma última
questão.
Aprovada a Reforma Trabalhista, é
necessário aprofundar alguns questionamentos que já vinham sendo feitos. O que
aconteceu em outros países que adotaram iniciativas até menos radicais que a
reforma brasileira? Vejamos.
Como dissemos aqui, a proposta
convertida em Lei 13.467/2017, sobre alterar sobremodo os eixos orientadores do
Direito e do Processo do Trabalho, não corresponde à sua falsa premissa de
trazer “modernidade” para as relações de trabalho e/ou de propiciar maior
desenvolvimento para a economia brasileira. Bem ao contrário, outras
experiências nacionais bem demonstram que tal reforma nada trará de
“modernidade” ─ a não ser que compreendamos tratar-se da chamada “modernização
conservadora”[10] ─ e, para mais, não gerará novos empregos.
A Lei 13.467/2017, na verdade,
reduzirá oportunidades de trabalho protegidas (= trabalho decente),
incrementando oportunidades de subempregos e formas de trabalho precárias, com
provável rebaixamento da média universal de salários. Seguimos, portanto, na
contramão da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que aposta no
trabalho decente como única alternativa para diminuir a pobreza extrema no
mundo, e com a qual se comprometeu o Brasil em 2015. Mas sobre isto já falamos
na coluna anterior.
É importante, nesse passo, ter em
conta que justamente o ano de 2015 foi lembrado como o primeiro ano em que 1%
(um por cento) da população mundial passou a deter patrimônio equivalente aos
outros 99% (noventa e nove por cento) da humanidade. A mesma pesquisa identifica
que 0,7% desse contingente monopoliza 45,2% da riqueza total e os 10% mais
ricos do planeta têm 88% dos ativos totais[11]. Esses números indicam uma
desigual concentração de riqueza e renda, com terríveis desdobramentos. Tais
dados acentuam-se no Brasil, onde ainda se encontram fortes traços da cultura
escravocrata, patrimonialista e clientelista, com diversos exemplos candentes a
se alinhavar. Veja-se, p. ex., que o Governo brasileiro só admitiu a existência
de trabalho escravo contemporâneo em território nacional em 1995, após inúmeras
denúncias internacionais (e, de 1995 a 2012, o Poder Público já havia resgatado
mais de 42 mil pessoas em situação análoga a de escravo). Veja-se, mais, que o
país só regulamentou a mínima isonomia entre o trabalho doméstico e o trabalho
urbano em junho de 2015 (LC n. 150/2015, editada a partir da EC n. 72/2013).
Nesse preciso contexto de aguda
desigualdade ─ com ilhas de incivilidade que remontam ao medievo ─, votou-se, a
toque de caixa, o substitutivo do PL n. 6.787, sem qualquer debate realmente
sincero. Para que se tenha ideia, o relatório foi apresentado em 12/4/2017 e já
em 17/4 ─ uma semana depois ─ foi aberto o prazo de cinco sessões para emendas.
Em 25/4, o relatório já estava apreciado na Comissão Especial, e logo em
seguida, no dia 26/4/2017, aprovou-se a matéria no Plenário da Câmara,
inclusive sem qualquer estudo dos impactos negativos da proposta no orçamento
da União, como exigia a Constituição (art. 113 do ADCT, na redação da EC n.
95/2016), à vista da renúncia de receita decorrente da própria supressão de um
tributo federal (a saber, a contribuição sindical obrigatória). Noutras
discussões tão relevantes quanto esta, como foram as do Código Civil e do
Código de Processo Civil, os debates levaram anos a fio. Assim é que o PL n.
166, origem do novo CPC, chegou ao Senado em 2010, para ser sancionado somente
em 2015. Já o anteprojeto que resultou no Código Civil de 2002 remonta aos anos
setenta do século passado… E, nada obstante, críticas sobrevieram após a aprovação
de ambos os códigos. No caso da Lei n. 13.467/2017, o que mais se vê são
improvisos legislativos. As críticas não tardariam, como não tardaram. E já
chegam ao Supremo Tribunal Federal (ADI n. 5.766, ajuizada pelo
Procurador-Geral da República). Na dicção do Procurador Rodrigo JANOT, a Lei n.
13.467/2017 veio a lume com o propósito de desregulamentar as relações
trabalhistas e o declarado objetivo de reduzir o número de demandas na Justiça
do Trabalho, inserindo na Consolidação das Leis do Trabalho noventa e seis
dispositivos com intensa desregulamentação da proteção social do trabalho e
redução de direitos materiais dos trabalhadores. E arremata (tratando da
curiosíssima “gratuidade paga” introduzida pela Reforma):
“Na contramão dos movimentos
democráticos que consolidaram essas garantias de amplo e igualitário acesso à
Justiça, as normas impugnadas inviabilizam ao trabalhador economicamente
desfavorecido assumir os riscos naturais de demanda trabalhista e impõe-lhe
pagamento de custas e despesas processuais de sucumbência com uso de créditos
trabalhistas auferidos no processo, de natureza alimentar, em prejuízo do
sustento próprio e do de sua família”.
E o que reformas dessa magnitude
trouxeram para países que já as experimentaram?
Vejamos alguns brevíssimos
exemplos. O leitor poderá aprofundar facilmente tais pesquisas e chegar às suas
próprias conclusões.
Na Espanha, depois da reforma de
2012, o desemprego aumentou, houve redução de salários médios e o valor do
salário pago em território espanhol é hoje um dos mais baixos da União
Europeia. Houve, sim, um posterior ─ e tímido ─ crescimento da economia
espanhola, mas que bem se explica por razões diversas de quaisquer associações
plausíveis com a nova regulação trabalhista. No El País de 11 de julho último,
a manchete era: “Reforma trabalhista espanhola faz cinco anos: assim é a
geração de jovens desencantados que ela deixou”[12].
Em Portugal, da mesma forma,
foram introduzidas diversas modificações para reduzir custos empresariais,
especialmente ao ensejo do chamado “Programa de Estabilidade e Crescimento”
(2010). Foi assim, p. ex., com a diminuição do valor da indenização por
despedimento (antes de 30 dias por ano de trabalho, hoje de apenas 12 dias), a
redução pela metade do pagamento de horas extras e de descansos remunerados e a
supressão parcial das folgas compensatórias. Em Portugal, ademais, não se
admite a despedida arbitrária; mas, com a reforma, expandiram-se sensivelmente
os motivos válidos para dispensa foram ampliados, inclusive os relacionados à
gestão das empresas ou à inadaptação do trabalhador ao serviço. E o resultado
não foi propriamente a expansão do trabalho decente. Expandiram-se, ao revés,
postos de trabalho de menor qualidade (contratos temporários e a prazo,
subcontratações, contratos a tempo parcial etc.).
No México, após a reforma
trabalhista de Felipe Calderón (2012), passados cinco anos, o número de
desempregados aumentou e o que se deu foi basicamente uma migração dos postos
de trabalho, antes efetivos e duradouros, para postos tendencialmente precários
(trabalho terceirizado, por prazo determinado ─ como os “contratos por prova” ─
ou a tempo parcial). Segundo a Pesquisa Nacional de Ocupação e Emprego do
Instituto Nacional de Estadística y Geografía, mais de 57% da população
mexicana economicamente ativa sobrevive na informalidade laboral. Há um déficit de cinco milhões de empregos e
82% da PEA recebem menos do que 100 pesos diários (o que equivale a cerca de
US$ 5). A reforma ainda levou à queda do consumo e atingiu setores importantes
da economia mexicana.
Mesmo na Alemanha, o chamado
“Plano Hartz” ─ da “Agenda 2010” de Gerhard Schröder ─ jamais foi uma
unanimidade. O tal plano incrementou, entre outras medidas, (a) a expansão dos contratos temporários; e
(b) a criação dos “minijobs”, que são postos de trabalho com carga horária de
até 30 horas semanais (similares aos nossos contratos a tempo parcial), mas com
salários máximos € 450,00/mês, sem a incidência de impostos e com um
seguro-saúde. A ideia-base era a de que seria melhor ganhar pouco a ficar sem
trabalho (mesma ideia repetida à exaustão, no Parlamento, para a aprovação da
Lei n. 13.467/2017); mas o resultado foi bem diverso: o sistema alemão gerou,
como os demais, empregos precários e índices de pobreza incomuns para um país
rico. Em 2013, esse índice de empobrecimento chegou ao recorde de 15% da
população, o maior desde a reunificação do país.
Segundo recente relatório
coordenado por Christian Woltering, da organização não-governamental
“Associação para a Igualdade”[13],
“A Alemanha teve reformas
significativas no mercado de trabalho, começando com as reformas Hartz da
Agenda 2010, na época do chanceler Gerhard Schröeder, e continuando na mesma
direção com Angela Merkel. As reformas foram destinadas a enfrentar a falta de
competitividade do país e tiveram sucesso, já que a produtividade tem superado
o crescimento dos salários reais há mais de 20 anos”.
No entanto, na perspectiva
microeconômica, o relatório revela que apenas os 10% mais ricos estão se
beneficiando dessas mudanças, já que o crescimento econômico gerado não alcança
a faixa equivalente aos 30% /40% mais pobres. Resultado que, aliás, possivelmente
contribuiu para a derrota eleitoral do chanceler Gerhard Schröeder, com a mais
baixa votação de seu Partido (PSDA) desde o pós-guerra (apenas 23%).
No Brasil, a propósito, a Lei n.
13.467/2017 igualmente desagradou a população (ou “Sua Excelência, o Povo”,
como diria S.Ex.ª a Presidente do STF). Conforme recente pesquisa do Instituto
Datafolha[14], os brasileiros rejeitam a reforma trabalhista em percentual
superior a 64%. Em pesquisa direta no site do Senado, mais de 94% dos
brasileiros registraram posição contrária ao texto então discutido. Mas as
urnas a seu tempo dirão. Não façamos vaticínios.
Recolhida toda a informação
acima, caríssimo leitor, cabe enfim resumir a ópera e amarrar as pontas soltas.
Vamos a isto.
Na trajetória inexorável do tempo,
é preciso cuidar para que os reflexos não se façam passar por corpos reais. As
experiências do passado, redivivas em “modernidades”, podem abrir um labirinto
de espelhos de difícil superação a médio e longo prazos. Mas a nós,
brasileiros, o passado insiste em seduzir. Muitos de nós são eternos saudosos
de um tempo de leite e mel que rigorosamente jamais vivemos. E como dizemos
“bons tempos eram aqueles!”…
No caso específico da Lei n.
13.467/2017, já estamos no jogo. Apesar de todas as advertências, fomos
instados a ele. Resta jogá-lo. E, ao buscar as saídas, evitar o choque com as
imagens perdidas de um passado liberal que, a bem dos mínimos civilizatórios,
foi há muito superado pela proteção estatal de cariz humanitário (e assim o
diremos ─ humanitário ─ para evitar qualquer verniz “classista” que se queira
ver nessa leitura).
“Negociado sobre legislado” não
se admite a qualquer preço (ou tanto menos sob a máxima intervenção da
“intervenção mínima”, ut art. 8º, §3º, da “nova” CLT).
Barateamento de mão-de-obra não é
panaceia para aumento de produtividade ou de competitividade.
Desproteger ─ e desproteger
simplesmente ─ não emancipa.
Desumanizar não humaniza.
Afastemos, pois, os espelhos, e
vejamos a realidade (ou, ao menos, tentem vê-la como nós a vemos).
A Reforma Trabalhista foi
aprovada, é fato. Mas não o foi “por causa” da Justiça do Trabalho No atual
alinhamento dos astros, viria de qualquer modo, ainda que a Magistratura do
Trabalho rezasse pela mais ortodoxa das cartilhas. E nem será “por causa” da
Justiça do Trabalho que a Reforma Trabalhista falhará ou vingará. Os juízes do
Trabalho cumprirão a sua missão constitucional de interpretar e aplicar a lei
posta, de acordo com seu livre convencimento motivado (que não desapareceu!),
segundo as balizas que regem a função constitucional e baseiam o juramento de
investidura: a Constituição e as leis. E se a Reforma Trabalhista vingar ou
falhar, será por seus próprios (de)méritos. Os dados comparativos hauridos de
realidades estrangeiras que viveram inflexões similares não são animadores
(supra). Mas a Lei n. 13.467/2017 é o que é. E a sua natureza ditará o seu
destino.
As leis, quase tal qual seres
vivos, nascem, “crescem” (quando “pegam”), reproduzem-se (quando inspiram),
envelhecem e de regra morrem (quando são revogadas, expressa ou tacitamente).
Nesse intercurso, são interpretadas/aplicadas por juízes. É a ordem natural das
coisas, mesmo no universo do dever-ser (Sollen). Juízes do Trabalho não
merecerão ─ e nem admitirão ─ qualquer culpa por cumprirem seu mister
constitucional. Lamentarão, ademais, a atitude dos que, sendo juízes,
transigirem com tal pecha. Tampouco os cidadãos de bem, creiamos, deixar-se-ão
fascinar por esse diabólico canto de sereias.
Os juízes farão seu papel. Também
o farão procuradores do Trabalho, auditores-fiscais do Trabalho e advogados
trabalhistas. E as normas hauridas da Lei n. 13.467/2017 serão, afinal, o
produto de tudo isto. Como tem de ser,
nos genuínos Estados Democráticos de Direito. Entre nós, “brazucas”, isto foi aprendido
com os melhores; e, dentre todos, com o grande Eros Grau[15]:
“Hoje temos como assentado o
pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão textual e
a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir
dos textos e da realidade […]. A interpretação do direito tem caráter
constitutivo — não meramente declaratório, pois — e consiste na produção, pelo
intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a
serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a
definição de uma norma de decisão. […] Neste sentido, a interpretação/aplicação
do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o
caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos,
ainda: a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao
particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do
direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma
situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto
histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito
é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do
particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar
plenamente contingencial o singular. […] Se for assim ─ e assim de fato é ─
todo texto será obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua
transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se impõe
observarmos que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da
interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após
ter sido ela interpretada“.
É isto. Nada de novo sobre o Sol.
Ao menos para quem compreende minimamente as coisas do Direito.
E para quem mais as compreende no
campo laboral, findemos com Bauman[16]: em tempos de hipermodernidade, certas
“modernizações” trazem oculta a indizível figura de um “Estado de bem-estar
para os ricos” ─ a antípoda histórica do Direito do Trabalho ─, que curiosamente
“jamais teve a sua racionalidade questionada”. É o que dizia o emérito polonês,
falecido em janeiro deste ano…
Façamos nós, ao menos, o básico
esforço de questioná-la. Você, leitor, é réu do seu juízo.
Gostou da coluna? Nesta aqui, mais uma honrosa
“parceria”, desta vez com o dileto amigo Germano Siqueira, meu predecessor na
Presidência da ANAMATRA.
Fale comigo por intermédio do e-mail abaixo. Sugira
novos temas.
—————————————————–
[1] V. https://en.wikipedia.org/wiki/Company_union
(g.n.). V. também ALBERTA FEDERATION OF LABOUR. Beware of phony “unions”. In:
https://web.archive.org/web/20070919135734/http://www.afl.org/campaigns-issues/Phony_Unions/default.cfm.
Nesse último texto, são ainda chamados, no texto, como “dummy unions” (sindicatos-manequins)
ou “rat unions” (sindicatos-ratazanas).
[2] V.
http://www.opovo.com.br/jornal/politica/2017/07/liberacao-de-emendas-a-parlamentares-aumenta-75-em-maio-e-junho.html.
[3] ALINSKY, Saul D. Rules for Radicals: A Pragmatic
Primer for Realistic Radicals. New York: Random House, 1971, passim. V. também,
na versão para internet (VIntage Books):
https://monoskop.org/images/4/4d/Alinsky_Saul_D_Rules_for_Radicals_A_Practical_Primer_for_Realistic_Radicals.pdf.
A regra em questão, porém, foi incluída apenas na edição de 1972, juntamente
com a 12ª regra.
[4] V. CASAGRANDE, Cássio. “A Reforma Trabalhista e o
‘sonho americano’”. In:
https://jota.info/artigos/a-reforma-trabalhista-e-o-sonho-americano-11062017
(acesso em 4/9/2017).
[5] V. http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-05-08-Numero-de-processos-nos-tribunais-de-trabalho-nunca-foi-tao-baixo
(acesso em 4/9/2017). Sobre isso, em Portugal, concluiu o juiz PEDRO MOURÃO, no
Fórum Justiça Independente, que “[a] questão prende-se exatamente com situações
cada vez mais generalizadas de contratação de trabalhadores sem verdadeiros
contratos de trabalho e com uma fragmentação da coesão do mercado de trabalho,
com a quase inoperância de estruturas representativas dos trabalhadores que, na
imensa maioria das pequenas empresas nem sequer existe”. E nisto foi secundado
por ELINA FRAGA, bastonária da Ordem dos Advogados portuguesa, para quem “[a]s
custas judiciais revelam-se insuportáveis para a esmagadora maioria dos
cidadãos, fustigados nos últimos anos com recuos nos vencimentos e aumentos de
impostos. O apoio judiciário é hoje concedido apenas a quem está numa situação
de pobreza total ou indigência. E esta realidade agravou-se com a reorganização
judiciária, que envolveu o afastamento geográfico dos tribunais”. As alterações
realizadas pela Lei n. 13.467/2017, registre-se, são muito próximas daquelas
introduzidas, anos antes, em Portugal.
[6] V.
www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf
(acesso em 5/9/2017).
[7] Especificamente para a Justiça do Trabalho, v.
http://www.tst.jus.br/estatistica-do-cndt (acesso em 5/9/2017).
[8] V. Valor Econômico, 12.2.2017.
[9] V.
http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,a-venda-no-brasil–lucro-do-citi-salta-mais-de-600-em-2015,10000022999.
[10] MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do
Direito. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. pp.191-193.
[11] Dados do
“Estudo Anual de Riqueza” publicado pelo Credit Suisse, a partir de pesquisa
realizada em mais de duzentos países. V.
http://publications.credit-suisse.com/tasks/render/file/index.cfm?fileid=AD6F2B43-B17B-345E-E20A1A254A3E24A5
(acesso em 10/1/2017).
[12] V.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/16/economia/1497635788_119553.html
(acesso em 5/9/2017). Lê-se, ademais, no subtítulo: “Brasil usa reforma
espanhola como modelo, mas mudança na legislação criou empregos precários”.
Vale lembrar, a propósito, que o El País pouco ou nada tem de “esquerda”, ao
menos nos moldes geopolíticos atuais. É, ao revés, um ácido crítico de regimes
políticos ditos de “esquerda”, como os de Cuba, da Venezuela, do Equador e da
Bolívia.
[13] V. http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-03/relatorio-revela-aumento-da-pobreza-na-alemanha
(acesso em 5/9/2017).
[14] V.
http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml
(acesso em 5/9/2017). Eis breve excerto: “Quanto aos benefícios que a reforma
Trabalhista irá trazer, 64% avaliaram que ela trará mais benefícios aos
empresários do que para os trabalhadores. Essa taxa é mais alta entre os que
têm 25 a 34 anos (69%), entre os que tomaram conhecimento da reforma (73%),
entre os mais ricos (75%) e entre os mais instruídos (77%). Já, 21% avaliaram
que ela trará benefícios iguais para empresários e trabalhadores e 5% que ela
trará mais benefícios aos trabalhadores do que para os empresários. Uma parcela
de 10% não se posicionou. […] O Datafolha também perguntou o que é melhor para
as relações de trabalho (jornada de trabalho, férias e banco de horas), que
elas sejam definidas por lei ou que sejam livremente acordadas entre
empresários e trabalhadores. A maioria (60%) declarou que prefere que as
condições de trabalho sejam definidas por lei, 30% preferem que sejam acordadas
entre as partes e 10% não opinaram”.
[15] GRAU, Eros. Voto proferido na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. In: REVISTA TRIMESTRAL DE
JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-___. jun.-abr. 2011.
vol.216. pp.19-47 (g.n.).
[16] BAUMAN,
Zygmunt. Vida a crédito: Conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Trad.
Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.36.
Guilherme
Guimarães Feliciano - Juiz do Trabalho do TRT da 15ª Região. Presidente
da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho no biênio 2017-2019.
Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade
Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Escreve
mensalmente, para o Jota, nesta coluna “Juízo de Valor”.
Germano
Silveira de Siqueira - Juiz do Trabalho do TRT da 7ª Região. Presidente da
Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho no biênio 2015-2017.
Artigo publicado no JOTA: