sexta-feira, 8 de setembro de 2017

ARTIGO PUBLICADO NO JOTA - COLUNA JUÍZO DE VALOR - JUIZ GUILHERME FELICIANO

Reforma Trabalhista: por detrás do jogo de espelhos

O que aconteceu em outros países que adotaram iniciativas menos radicais que o Brasil?



Guilherme Guimarães Feliciano


Germano Silveira de Siqueira




“Triste figura, a daqueles que vivem como num jogo de espelhos em que só eles se veem reflectidos”

(Pedro CHAGAS FREITAS, 1979-__).

Como você já sabe, caro leitor, foi sancionada pelo presidente Michel Temer, no último dia 13 de junho, a Lei n. 13.467, que consagra a chamada reforma trabalhista brasileira. Era, na origem, um projeto de lei que pretendia alterar e introduzir alguns poucos artigos na CLT, mas já com gravidade bastante para incorporar ao ordenamento jurídico o chamado “negociado sobre o legislado”. Já então era perigosa: na atual moldura sindical brasileira, sem antes se revisar a lei de greve (Lei n. 7.713/1989) e promover uma reforma sindical ampla, que fortaleça e confira maior representatividade aos sindicatos, tal reforma significaria ─ como significará ─ simplesmente chancelar, sem maiores constrangimentos, a celebração de acordos em massa, não raro por sindicatos “pelegos”, meramente cartoriais, com a única finalidade de reduzir direitos mínimos assegurados em lei. Os Estados Unidos da América bem conhecem a realidade dos “yellow unions” (= sindicatos amarelos)… In verbis:

“Company or ‘yellow’ union is a worker organization which is dominated or influenced by an employer, and is therefore not an independent trade union. Company unions are contrary to international labour law (see ILO Convention 98, article 2). They were outlawed in the United States by the 1935 National Labor Relations Act §8(a)(2), due to their use as agents for interference with independent unions. Company unions persist in many countries, particularly with authoritarian governments.”[1]

Em bom português (tradução livre):

“Um sindicato de empresa ou “amarelo” é uma organização de trabalhadores dominada ou influenciada por um empregador e, por conseguinte, não é um sindicato independente. Os sindicatos de empresas contrariam o direito internacional do trabalho (v. Convenção 98 da OIT, artigo 2º). Eles foram proibidos nos Estados Unidos pela Lei Nacional de Relações de Trabalho de 1935 ─ §8 (a) (2) ─, devido ao seu uso como agentes que interferem com [a atuação de] sindicatos independentes.Os sindicatos de empresas persistem em muitos países, particularmente onde há governos autoritários”.

Qualquer semelhança com a sua realidade, querido leitor, não será mera coincidência. Há muitos sindicatos “amarelos” no Brasil. A Lei n. 13.467/2017 não os levou em consideração.

Mas a reforma trabalhista foi além. A partir do relatório do Deputado Rogério Marinho foram propostas e acolhidas quase duzentas mudanças na CLT, desta feita com o ânimo de alterar completamente o eixo lógico e axiológico da Consolidação, interferindo com a própria principiologia do Direito do Trabalho. Disso já falamos em outras colunas. E, entre os mecanismos engendrados para instrumentalizar a aprovação dessa matéria ─ como, p. ex., liberação de emendas parlamentares (Ricardo Ferraço foi o relator da reforma trabalhista na Comissão de Assuntos Sociais e recebeu R$ 7,6 milhões nos meses seguintes ao seu relatório com parecer favorável[2]) ─, os segmentos interessados valeram-se do que Saul Alinsky identificaria como uma de suas “táticas de confronto”, provavelmente à altura da 13ª regra: “Escolha o alvo, congele-o e polarize-o”[3].  Pois bem: o alvo escolhido foi a Justiça do Trabalho. Eis a “bola da vez”, o novo objeto do discurso apocalíptico. Discurso que, a propósito, tem animado inclusive uma série de “advertências” gestadas para intimidar juízes do Trabalho, dentro e fora da instituição, constrangendo-o no seu mister constitucional de interpretar/aplicar o “novo” Direito do Trabalho, tal como vazado na Lei n. 13.467/2017. “Aplique o texto e não o interprete”, ouve-se aqui e acolá. Como se isto fosse possível.

A propaganda baseada nas falácias chegou a ludibriar inclusive elevadas autoridades judiciais da República, como p. ex. o Ministro Luís Roberto Barroso que, em importante pronunciamento que fez por ocasião do Brazil Forum UK 2017 (tradicional evento realizado pela London School of Economics, com pensadores brasileiros e estrangeiros, na Universidade de Oxford), ao discorrer sobre a realidade do trabalho ─ e da instituição judiciária que lida com esse tema ─ no Brasil, afirmou que:

a) a Justiça do Trabalho alberga 98% de todas as demandas processuais trabalhistas do planeta; e que
b) o Citibank estaria deixando a operação de varejo no Brasil em razão dos “transtornos” causados pela legislação trabalhista ou pela Justiça do Trabalho.
Duas inverdades absolutas. Mais que imprecisas, infundadas. Para mais, ilações profundamente injustas, se considerarmos qual é o papel do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho em um dos países mais desiguais do planeta; e se considerarmos que, a partir de falácias como essa, criou-se o ambiente para uma reforma trabalhista radical e desequilibrada, redutora de garantias conquistadas ao longo de quase um século, conquanto o país seja signatário do Pacto de San José da Costa Rica (tendo se comprometido, nos termos do art. 26, a  “adotar providências […] a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, […] na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”… [g.n.]).

Façamos, pois, uma breve desconstrução de tais dados. Outros já a fizeram, inclusive à época. Infelizmente, sem a penetração suficiente para fazer repensar a reforma (ao menos quanto a este “fundamento”). Então, convirá sempre insistir.

A Justiça do Trabalho albergaria 98% de todas as ações trabalhistas do mundo? Não, amigo leitor. Não é verdade.

A Justiça do Trabalho brasileira tem, entre processos novos e pendentes, algo em torno de 7,5 milhões de processos para resolver; e este é todo seu acervo. Atente para o dado. Noutro dia, halterofilistas da desinformação afirmavam, sem maior constrangimento, que a Justiça do Trabalho respondia, sozinha, por 100 milhões de processos no Brasil… Absolutamente mendaz.

Observe que, tomando em conta o número de 7,5 milhões e a fictícia marca dos 98% referida pelo Min. Barroso, isso equivaleria a dizer que o resto do mundo, responsável pelos outros 2% de demandas trabalhistas (= 100% – 98% = 2%, com o perdão da minúcia), responderiam por aproximadamente 160.000 ações trabalhistas… Ou seja, pelos dados em questão, haveria apenas 160.000 ações trabalhistas em todo o mundo restante (que, se divididas pelos outros 192 países, resultariam em uma média de 833 processos anuais por cada; ou, se dividíssemos esse suposto acervo apenas pelos 34 países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – OCDE, ficaríamos com a irrisória quantidade de 4.705 processos/ano por cada dos países integrantes dessa Organização, o que é obviamente irreal.

Com efeito, penas nos Estados Unidos da América, “há razoável segurança para estimar que os processos trabalhistas na Justiça dos Estados devem girar em torno de 1,7 milhão ao ano”[4]; e estamos falando apenas dos Estados da União, sem computar as ações na Justiça Federal, de menor monta. Do mesmo modo, são 600 mil ações trabalhistas ao ano na Alemanha. Em Portugal, no ano de 2015, o número de processos novos nos tribunais do trabalho, em primeira instância, foi de 44.225, sendo o valor mais baixo da atual série estatística (iniciada em 1993)[5]; e, ainda assim, muito superior a qualquer uma daquelas “médias” resultantes.

Tudo a demonstrar que o percentual alarmista de 98% das demandas trabalhistas mundiais concentradas no Brasil é falso e inverossímil. Não se ignora, é claro, que a litigiosidade é elevada, inclusive porque a Justiça do Trabalho brasileira é usualmente utilizada para postergar a implementação de direitos sociais “stricto sensu”, o que se associa à própria cultura de sonegação que informa certos segmentos do patronato (consubstanciando-se em frases como a célebre “vá procurar seus direitos”). Mas nada próximo do que constou de seu recente libelo acusatório.

Aliás, vale registrar que mais de 50% dos pedidos levados à Justiça do Trabalho dizem respeito apenas ao não pagamento de direitos rescisórios, ou seja, aqueles direitos básicos a que todos os trabalhadores fazem jus quando são dispensados (saldo salarial, aviso prévio, 13º salário, férias mais 1/3, FGTS mais 40%, seguro-desemprego). Sonegar tais direitos é tão inaceitável quanto alguém servir-se em um restaurante, fartar-se ao bel prazer, encerrar o serviço, levantar-se com a família sem pagar a conta e por fim dizer ao dono do estabelecimento que, se acaso quiser ver-se quitado, “procure os seus direitos” perante a justiça comum (na expectativa de, adiante, pagar apenas a metade ─ ou quiçá 1/3 ─ do preço de cardápio, se possível em duas ou três parcelas, em um amistoso acordo judicial). Parece justo, leitor? Porque, se não for justo para com um honesto comerciante, não o será tampouco para com um honesto trabalhador.

A alta litigiosidade, ademais, não e idiossincrasia da Justiça do Trabalho. Basta ver que, nas Justiças estaduais, o número de ações em tramitação sobe para 80 milhões de processos, enquanto que, na Justiça Federal, tal quantitativo é da ordem de 11 milhões.

Interessaria discutir, outrossim, quem litiga, em paralelo ao quê se litiga. De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Justiça de 2013[6], os Bancos (com 38,14%) foram os indicados como os maiores litigantes em todo o Poder Judiciário (ora como autores, ora sobretudo como réus) , figurando também com esse perfil nos litígios perante a Justiça do Trabalho (20% da demanda). À frente da lista, nesse setor, estavam a Caixa Econômica Federal (5,29%), o Banco do Brasil (4,82%), o Itaú (3,61%), o Santander (2,90%), o Banco Itaú S/A (2,89%) e o Unibanco (0,72%). Se observamos especificamente os dados da Justiça do Trabalho[7] para 2017, veremos que entre os quarenta maiores litigantes, de acordo com os dados do Cadastro Nacional de Devedores Trabalhistas (CNDT), estão o Banco do Brasil (18º) e a Caixa Econômica Federal (32º).

Mas, por falar em bancos, tratemos da segunda falácia.

O Citibank deixou o país ─ ou estaria a deixá-lo ─ por causa da Justiça do Trabalho? Não.

A bem da verdade, a decisão de venda de sua operação de varejo no Brasil nada tem a ver com causas trabalhistas. Mesmo com clientela elitizada em um país pobre e desigual, o Citibank “teve lucro líquido de R$ 958,163 milhões em suas operações no Brasil em 2016, o que representa um aumento de 7,2% em relação ao ano anterior”[8]. A rigor, já no dia 24/3/2016, no Caderno de Economia do jornal “O Estado de São Paulo”, uma manchete anunciava que, “[à] venda no Brasil, lucro do Citi salta mais de 600% em 2015” , e o texto a seguir dizia que, “[n]a contramão do mercado, subsidiária do banco americano lucrou R$ 894,2 milhões no ano passado com a diminuição das provisões contra calote”. E dizia mais, que a “operação de varejo está à venda juntamente com as unidades da Argentina e da Colômbia”. À altura, a Argentina já navegava sob ventos neoliberais, com MAURÍCIO MACRI (desde 12/2015). Ainda assim, o Citi a incluiu no “pacote”.

Bem se vê, ademais, que o Citi experimentava, no Brasil, boa lucratividade por dois anos seguidos. Sua decisão, porém, era parte de uma estratégia maior, que envolvia mais alguns países e levava em conta outros inúmeros fatores[9]. Nenhum deles, aparentemente, associado à Justiça do Trabalho.

Houvesse quaisquer dúvidas, bastaria ver o “Diário de Pernambuco” de 16/7/2015, que já dava conta desses outros problemas, todos distantes da Justiça do Trabalho (porque ligados muito especialmente à sua clientela, a apresentar percentual de inadimplência que a instituição não admitia). Dizia a matéria:

“O Citibank reduziu as operações de crédito no Brasil no segundo trimestre, em meio a um aumento da inadimplência. (…) Ao mesmo tempo, os calotes, considerando os atrasos acima de 90 dias, subiram de 1,9% para 2,4%. O Citi, terceiro maior banco dos Estados Unidos, divulgou nesta quinta-feira, 16, seus resultados trimestrais. A instituição não informa outros números do Brasil, onde reestruturou sua operação de varejo recentemente”.

Logo, a afirmativa de que o Citibank foi “escorraçado” do Brasil pela Justiça do Trabalho ou pela legislação trabalhista vigente é uma afirmação rigorosamente falsa. Nada mais do que isto.

Dito isto, sobrevém uma última questão.

Aprovada a Reforma Trabalhista, é necessário aprofundar alguns questionamentos que já vinham sendo feitos. O que aconteceu em outros países que adotaram iniciativas até menos radicais que a reforma brasileira? Vejamos.

Como dissemos aqui, a proposta convertida em Lei 13.467/2017, sobre alterar sobremodo os eixos orientadores do Direito e do Processo do Trabalho, não corresponde à sua falsa premissa de trazer “modernidade” para as relações de trabalho e/ou de propiciar maior desenvolvimento para a economia brasileira. Bem ao contrário, outras experiências nacionais bem demonstram que tal reforma nada trará de “modernidade” ─ a não ser que compreendamos tratar-se da chamada “modernização conservadora”[10] ─ e, para mais, não gerará novos empregos.

A Lei 13.467/2017, na verdade, reduzirá oportunidades de trabalho protegidas (= trabalho decente), incrementando oportunidades de subempregos e formas de trabalho precárias, com provável rebaixamento da média universal de salários. Seguimos, portanto, na contramão da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que aposta no trabalho decente como única alternativa para diminuir a pobreza extrema no mundo, e com a qual se comprometeu o Brasil em 2015. Mas sobre isto já falamos na coluna anterior.

É importante, nesse passo, ter em conta que justamente o ano de 2015 foi lembrado como o primeiro ano em que 1% (um por cento) da população mundial passou a deter patrimônio equivalente aos outros 99% (noventa e nove por cento) da humanidade. A mesma pesquisa identifica que 0,7% desse contingente monopoliza 45,2% da riqueza total e os 10% mais ricos do planeta têm 88% dos ativos totais[11]. Esses números indicam uma desigual concentração de riqueza e renda, com terríveis desdobramentos. Tais dados acentuam-se no Brasil, onde ainda se encontram fortes traços da cultura escravocrata, patrimonialista e clientelista, com diversos exemplos candentes a se alinhavar. Veja-se, p. ex., que o Governo brasileiro só admitiu a existência de trabalho escravo contemporâneo em território nacional em 1995, após inúmeras denúncias internacionais (e, de 1995 a 2012, o Poder Público já havia resgatado mais de 42 mil pessoas em situação análoga a de escravo). Veja-se, mais, que o país só regulamentou a mínima isonomia entre o trabalho doméstico e o trabalho urbano em junho de 2015 (LC n. 150/2015, editada a partir da EC n. 72/2013).

Nesse preciso contexto de aguda desigualdade ─ com ilhas de incivilidade que remontam ao medievo ─, votou-se, a toque de caixa, o substitutivo do PL n. 6.787, sem qualquer debate realmente sincero. Para que se tenha ideia, o relatório foi apresentado em 12/4/2017 e já em 17/4 ─ uma semana depois ─ foi aberto o prazo de cinco sessões para emendas. Em 25/4, o relatório já estava apreciado na Comissão Especial, e logo em seguida, no dia 26/4/2017, aprovou-se a matéria no Plenário da Câmara, inclusive sem qualquer estudo dos impactos negativos da proposta no orçamento da União, como exigia a Constituição (art. 113 do ADCT, na redação da EC n. 95/2016), à vista da renúncia de receita decorrente da própria supressão de um tributo federal (a saber, a contribuição sindical obrigatória). Noutras discussões tão relevantes quanto esta, como foram as do Código Civil e do Código de Processo Civil, os debates levaram anos a fio. Assim é que o PL n. 166, origem do novo CPC, chegou ao Senado em 2010, para ser sancionado somente em 2015. Já o anteprojeto que resultou no Código Civil de 2002 remonta aos anos setenta do século passado… E, nada obstante, críticas sobrevieram após a aprovação de ambos os códigos. No caso da Lei n. 13.467/2017, o que mais se vê são improvisos legislativos. As críticas não tardariam, como não tardaram. E já chegam ao Supremo Tribunal Federal (ADI n. 5.766, ajuizada pelo Procurador-Geral da República). Na dicção do Procurador Rodrigo JANOT, a Lei n. 13.467/2017 veio a lume com o propósito de desregulamentar as relações trabalhistas e o declarado objetivo de reduzir o número de demandas na Justiça do Trabalho, inserindo na Consolidação das Leis do Trabalho noventa e seis dispositivos com intensa desregulamentação da proteção social do trabalho e redução de direitos materiais dos trabalhadores. E arremata (tratando da curiosíssima “gratuidade paga” introduzida pela Reforma):

“Na contramão dos movimentos democráticos que consolidaram essas garantias de amplo e igualitário acesso à Justiça, as normas impugnadas inviabilizam ao trabalhador economicamente desfavorecido assumir os riscos naturais de demanda trabalhista e impõe-lhe pagamento de custas e despesas processuais de sucumbência com uso de créditos trabalhistas auferidos no processo, de natureza alimentar, em prejuízo do sustento próprio e do de sua família”.

E o que reformas dessa magnitude trouxeram para países que já as experimentaram?

Vejamos alguns brevíssimos exemplos. O leitor poderá aprofundar facilmente tais pesquisas e chegar às suas próprias conclusões.

Na Espanha, depois da reforma de 2012, o desemprego aumentou, houve redução de salários médios e o valor do salário pago em território espanhol é hoje um dos mais baixos da União Europeia. Houve, sim, um posterior ─ e tímido ─ crescimento da economia espanhola, mas que bem se explica por razões diversas de quaisquer associações plausíveis com a nova regulação trabalhista. No El País de 11 de julho último, a manchete era: “Reforma trabalhista espanhola faz cinco anos: assim é a geração de jovens desencantados que ela deixou”[12].

Em Portugal, da mesma forma, foram introduzidas diversas modificações para reduzir custos empresariais, especialmente ao ensejo do chamado “Programa de Estabilidade e Crescimento” (2010). Foi assim, p. ex., com a diminuição do valor da indenização por despedimento (antes de 30 dias por ano de trabalho, hoje de apenas 12 dias), a redução pela metade do pagamento de horas extras e de descansos remunerados e a supressão parcial das folgas compensatórias. Em Portugal, ademais, não se admite a despedida arbitrária; mas, com a reforma, expandiram-se sensivelmente os motivos válidos para dispensa foram ampliados, inclusive os relacionados à gestão das empresas ou à inadaptação do trabalhador ao serviço. E o resultado não foi propriamente a expansão do trabalho decente. Expandiram-se, ao revés, postos de trabalho de menor qualidade (contratos temporários e a prazo, subcontratações, contratos a tempo parcial etc.).

No México, após a reforma trabalhista de Felipe Calderón (2012), passados cinco anos, o número de desempregados aumentou e o que se deu foi basicamente uma migração dos postos de trabalho, antes efetivos e duradouros, para postos tendencialmente precários (trabalho terceirizado, por prazo determinado ─ como os “contratos por prova” ─ ou a tempo parcial). Segundo a Pesquisa Nacional de Ocupação e Emprego do Instituto Nacional de Estadística y Geografía, mais de 57% da população mexicana economicamente ativa sobrevive na informalidade laboral.  Há um déficit de cinco milhões de empregos e 82% da PEA recebem menos do que 100 pesos diários (o que equivale a cerca de US$ 5). A reforma ainda levou à queda do consumo e atingiu setores importantes da economia mexicana.

Mesmo na Alemanha, o chamado “Plano Hartz” ─ da “Agenda 2010” de Gerhard Schröder ─ jamais foi uma unanimidade. O tal plano incrementou, entre outras medidas,  (a) a expansão dos contratos temporários; e (b) a criação dos “minijobs”, que são postos de trabalho com carga horária de até 30 horas semanais (similares aos nossos contratos a tempo parcial), mas com salários máximos € 450,00/mês, sem a incidência de impostos e com um seguro-saúde. A ideia-base era a de que seria melhor ganhar pouco a ficar sem trabalho (mesma ideia repetida à exaustão, no Parlamento, para a aprovação da Lei n. 13.467/2017); mas o resultado foi bem diverso: o sistema alemão gerou, como os demais, empregos precários e índices de pobreza incomuns para um país rico. Em 2013, esse índice de empobrecimento chegou ao recorde de 15% da população, o maior desde a reunificação do país.

Segundo recente relatório coordenado por Christian Woltering, da organização não-governamental “Associação para a Igualdade”[13],

“A Alemanha teve reformas significativas no mercado de trabalho, começando com as reformas Hartz da Agenda 2010, na época do chanceler Gerhard Schröeder, e continuando na mesma direção com Angela Merkel. As reformas foram destinadas a enfrentar a falta de competitividade do país e tiveram sucesso, já que a produtividade tem superado o crescimento dos salários reais há mais de 20 anos”.

No entanto, na perspectiva microeconômica, o relatório revela que apenas os 10% mais ricos estão se beneficiando dessas mudanças, já que o crescimento econômico gerado não alcança a faixa equivalente aos 30% /40% mais pobres. Resultado que, aliás, possivelmente contribuiu para a derrota eleitoral do chanceler Gerhard Schröeder, com a mais baixa votação de seu Partido (PSDA) desde o pós-guerra (apenas 23%).

No Brasil, a propósito, a Lei n. 13.467/2017 igualmente desagradou a população (ou “Sua Excelência, o Povo”, como diria S.Ex.ª a Presidente do STF). Conforme recente pesquisa do Instituto Datafolha[14], os brasileiros rejeitam a reforma trabalhista em percentual superior a 64%. Em pesquisa direta no site do Senado, mais de 94% dos brasileiros registraram posição contrária ao texto então discutido. Mas as urnas a seu tempo dirão. Não façamos vaticínios.

Recolhida toda a informação acima, caríssimo leitor, cabe enfim resumir a ópera e amarrar as pontas soltas. Vamos a isto.

Na trajetória inexorável do tempo, é preciso cuidar para que os reflexos não se façam passar por corpos reais. As experiências do passado, redivivas em “modernidades”, podem abrir um labirinto de espelhos de difícil superação a médio e longo prazos. Mas a nós, brasileiros, o passado insiste em seduzir. Muitos de nós são eternos saudosos de um tempo de leite e mel que rigorosamente jamais vivemos. E como dizemos “bons tempos eram aqueles!”…

No caso específico da Lei n. 13.467/2017, já estamos no jogo. Apesar de todas as advertências, fomos instados a ele. Resta jogá-lo. E, ao buscar as saídas, evitar o choque com as imagens perdidas de um passado liberal que, a bem dos mínimos civilizatórios, foi há muito superado pela proteção estatal de cariz humanitário (e assim o diremos ─ humanitário ─ para evitar qualquer verniz “classista” que se queira ver nessa leitura).

“Negociado sobre legislado” não se admite a qualquer preço (ou tanto menos sob a máxima intervenção da “intervenção mínima”, ut art. 8º, §3º, da “nova” CLT).

Barateamento de mão-de-obra não é panaceia para aumento de produtividade ou de competitividade.

Desproteger ─ e desproteger simplesmente ─ não emancipa.

Desumanizar não humaniza.

Afastemos, pois, os espelhos, e vejamos a realidade (ou, ao menos, tentem vê-la como nós a vemos).

A Reforma Trabalhista foi aprovada, é fato. Mas não o foi “por causa” da Justiça do Trabalho No atual alinhamento dos astros, viria de qualquer modo, ainda que a Magistratura do Trabalho rezasse pela mais ortodoxa das cartilhas. E nem será “por causa” da Justiça do Trabalho que a Reforma Trabalhista falhará ou vingará. Os juízes do Trabalho cumprirão a sua missão constitucional de interpretar e aplicar a lei posta, de acordo com seu livre convencimento motivado (que não desapareceu!), segundo as balizas que regem a função constitucional e baseiam o juramento de investidura: a Constituição e as leis. E se a Reforma Trabalhista vingar ou falhar, será por seus próprios (de)méritos. Os dados comparativos hauridos de realidades estrangeiras que viveram inflexões similares não são animadores (supra). Mas a Lei n. 13.467/2017 é o que é. E a sua natureza ditará o seu destino.

As leis, quase tal qual seres vivos, nascem, “crescem” (quando “pegam”), reproduzem-se (quando inspiram), envelhecem e de regra morrem (quando são revogadas, expressa ou tacitamente). Nesse intercurso, são interpretadas/aplicadas por juízes. É a ordem natural das coisas, mesmo no universo do dever-ser (Sollen). Juízes do Trabalho não merecerão ─ e nem admitirão ─ qualquer culpa por cumprirem seu mister constitucional. Lamentarão, ademais, a atitude dos que, sendo juízes, transigirem com tal pecha. Tampouco os cidadãos de bem, creiamos, deixar-se-ão fascinar por esse diabólico canto de sereias.

Os juízes farão seu papel. Também o farão procuradores do Trabalho, auditores-fiscais do Trabalho e advogados trabalhistas. E as normas hauridas da Lei n. 13.467/2017 serão, afinal, o produto de tudo isto.  Como tem de ser, nos genuínos Estados Democráticos de Direito. Entre nós, “brazucas”, isto foi aprendido com os melhores; e, dentre todos, com o grande Eros Grau[15]:

“Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade […]. A interpretação do direito tem caráter constitutivo — não meramente declaratório, pois — e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. […] Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular. […] Se for assim ─ e assim de fato é ─ todo texto será obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se impõe observarmos que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após ter sido ela interpretada“.

É isto. Nada de novo sobre o Sol. Ao menos para quem compreende minimamente as coisas do Direito.

E para quem mais as compreende no campo laboral, findemos com Bauman[16]: em tempos de hipermodernidade, certas “modernizações” trazem oculta a indizível figura de um “Estado de bem-estar para os ricos” ─ a antípoda histórica do Direito do Trabalho ─, que curiosamente “jamais teve a sua racionalidade questionada”. É o que dizia o emérito polonês, falecido em janeiro deste ano…

Façamos nós, ao menos, o básico esforço de questioná-la. Você, leitor, é réu do seu juízo. 

Gostou da coluna? Nesta aqui, mais uma honrosa “parceria”, desta vez com o dileto amigo Germano Siqueira, meu predecessor na Presidência da ANAMATRA.

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[1] V. https://en.wikipedia.org/wiki/Company_union (g.n.). V. também ALBERTA FEDERATION OF LABOUR. Beware of phony “unions”. In: https://web.archive.org/web/20070919135734/http://www.afl.org/campaigns-issues/Phony_Unions/default.cfm. Nesse último texto, são ainda chamados, no texto, como “dummy unions” (sindicatos-manequins) ou “rat unions” (sindicatos-ratazanas).

[2] V. http://www.opovo.com.br/jornal/politica/2017/07/liberacao-de-emendas-a-parlamentares-aumenta-75-em-maio-e-junho.html.

[3] ALINSKY, Saul D. Rules for Radicals: A Pragmatic Primer for Realistic Radicals. New York: Random House, 1971, passim. V. também, na versão para internet (VIntage Books): https://monoskop.org/images/4/4d/Alinsky_Saul_D_Rules_for_Radicals_A_Practical_Primer_for_Realistic_Radicals.pdf. A regra em questão, porém, foi incluída apenas na edição de 1972, juntamente com a 12ª regra.

[4] V. CASAGRANDE, Cássio. “A Reforma Trabalhista e o ‘sonho americano’”. In: https://jota.info/artigos/a-reforma-trabalhista-e-o-sonho-americano-11062017 (acesso em 4/9/2017).

[5] V. http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-05-08-Numero-de-processos-nos-tribunais-de-trabalho-nunca-foi-tao-baixo (acesso em 4/9/2017). Sobre isso, em Portugal, concluiu o juiz PEDRO MOURÃO, no Fórum Justiça Independente, que “[a] questão prende-se exatamente com situações cada vez mais generalizadas de contratação de trabalhadores sem verdadeiros contratos de trabalho e com uma fragmentação da coesão do mercado de trabalho, com a quase inoperância de estruturas representativas dos trabalhadores que, na imensa maioria das pequenas empresas nem sequer existe”. E nisto foi secundado por ELINA FRAGA, bastonária da Ordem dos Advogados portuguesa, para quem “[a]s custas judiciais revelam-se insuportáveis para a esmagadora maioria dos cidadãos, fustigados nos últimos anos com recuos nos vencimentos e aumentos de impostos. O apoio judiciário é hoje concedido apenas a quem está numa situação de pobreza total ou indigência. E esta realidade agravou-se com a reorganização judiciária, que envolveu o afastamento geográfico dos tribunais”. As alterações realizadas pela Lei n. 13.467/2017, registre-se, são muito próximas daquelas introduzidas, anos antes, em Portugal.

[6] V. www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf (acesso em 5/9/2017).

[7] Especificamente para a Justiça do Trabalho, v. http://www.tst.jus.br/estatistica-do-cndt (acesso em 5/9/2017).

[8] V. Valor Econômico, 12.2.2017.

[9] V. http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,a-venda-no-brasil–lucro-do-citi-salta-mais-de-600-em-2015,10000022999.

[10] MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. pp.191-193.

[11]  Dados do “Estudo Anual de Riqueza” publicado pelo Credit Suisse, a partir de pesquisa realizada em mais de duzentos países. V. http://publications.credit-suisse.com/tasks/render/file/index.cfm?fileid=AD6F2B43-B17B-345E-E20A1A254A3E24A5 (acesso em 10/1/2017).

[12] V. https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/16/economia/1497635788_119553.html (acesso em 5/9/2017). Lê-se, ademais, no subtítulo: “Brasil usa reforma espanhola como modelo, mas mudança na legislação criou empregos precários”. Vale lembrar, a propósito, que o El País pouco ou nada tem de “esquerda”, ao menos nos moldes geopolíticos atuais. É, ao revés, um ácido crítico de regimes políticos ditos de “esquerda”, como os de Cuba, da Venezuela, do Equador e da Bolívia.

[13] V. http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-03/relatorio-revela-aumento-da-pobreza-na-alemanha (acesso em 5/9/2017).

[14] V. http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml (acesso em 5/9/2017). Eis breve excerto: “Quanto aos benefícios que a reforma Trabalhista irá trazer, 64% avaliaram que ela trará mais benefícios aos empresários do que para os trabalhadores. Essa taxa é mais alta entre os que têm 25 a 34 anos (69%), entre os que tomaram conhecimento da reforma (73%), entre os mais ricos (75%) e entre os mais instruídos (77%). Já, 21% avaliaram que ela trará benefícios iguais para empresários e trabalhadores e 5% que ela trará mais benefícios aos trabalhadores do que para os empresários. Uma parcela de 10% não se posicionou. […] O Datafolha também perguntou o que é melhor para as relações de trabalho (jornada de trabalho, férias e banco de horas), que elas sejam definidas por lei ou que sejam livremente acordadas entre empresários e trabalhadores. A maioria (60%) declarou que prefere que as condições de trabalho sejam definidas por lei, 30% preferem que sejam acordadas entre as partes e 10% não opinaram”.

[15] GRAU, Eros. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-___. jun.-abr. 2011. vol.216. pp.19-47 (g.n.).

[16]  BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: Conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.36.

Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz do Trabalho do TRT da 15ª Região. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho no biênio 2017-2019. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Escreve mensalmente, para o Jota, nesta coluna “Juízo de Valor”.

Germano Silveira de Siqueira - Juiz do Trabalho do TRT da 7ª Região. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho no biênio 2015-2017.

Artigo publicado no JOTA:


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