Boicote ao Judiciário tem consequências
institucionais perigosas
Por Rodrigo Trindade e Guilherme Feliciano
Temos visto uma inusitada atenção de
importantes segmentos da sociedade e da mídia para o tema da remuneração e do
regime jurídico da magistratura. Seguindo adventício arrebatamento de
consciência, requentam-se críticas que ora se assentam no atual cenário de
retração econômica — ou já nem tanto, considerando-se o crescimento de 1% do
PIB em 2017 —, ora se perdem nas ociosas satanizações do funcionalismo público.
Ao mesmo tempo em que se comparam profissões as mais díspares, em linhas de
argumentação que permitiriam justificar praticamente qualquer coisa,
redescobrem-se parcelas já questionadas e justificadas, acobertam-se as
respostas institucionais e obliteram-se os verdadeiros problemas e interesses
envolvidos.
De todos os ataques, o mais recorrente diz
respeito ao auxílio-moradia (ou, na dicção legal, ajuda de custo para moradia).
A respeito, vale sempre lembrar que tal ajuda de custo, em relação ao Poder
Judiciário, é parcela prevista na Lei Orgânica da Magistratura nacional (LC 35)
desde 1979; mas dependia da regulamentação em lei, que até 2014 já existia em
18 estados, mas nunca existiu na União. Os juízes da União só começaram a recebê-lo
em 2014, ao ensejo da ACO 2.511 (para os juízes do Trabalho) e da AO 1.773
(para os juízes federais); e, logo depois, por força da Resolução CNJ 199, que
finalmente regulamentou a matéria para toda a magistratura do país, com
uniformidade, de modo que em nenhum estado ou tribunal se pague mais ou menos
do que o valor nacionalmente fixado.
É fato, ademais, que muitos recebem a ajuda
de custo para moradia, embora tenham imóvel próprio. Assim como, noutras
plagas, paga-se vale-transporte a quem tem automóvel. Nos termos da lei em
vigor, o auxílio-moradia independe de fatores pessoais e liga-se à
característica profissional de transitoriedade de domicílio, como ainda ao
dever legal que praticamente só existe para juízes e membros do Ministério
Público: o de residir na jurisdição onde atual (para o que deveriam ter imóvel
funcional disponibilizado pelo poder público; como geralmente não há, paga-se,
em substituição, a referida ajuda de custo). Eis a ideia: compensar
economicamente por despesas que, a rigor, o juiz não deveria suportar para
cumprir o seu dever de residir na jurisdição.
É certo que toda remuneração de agentes
públicos deve se submeter ao conhecimento e à aprovação popular. Logo, é
plenamente democrático repensar — dentro do trâmite legislativo próprio —
critérios para pagamento de verbas como o chamado “auxílio-moradia”. E,
mantendo-se o mesmo republicanismo, o exame só é sincero se evitar
seletividades ocasionais e superar as assimetrias regionais — especialmente
entre a União e os estados — que existiam até 2014. Para tanto, é
imprescindível fazer uma necessária análise do amplo espectro de agentes de
Estado que percebem tal parcela — o que inclui parlamentares, ministros de
Estado e outras categorias de servidores públicos —, não raro sob criativas
denominações, seja em espécie, seja por subvenções ou mediante comodato de
imóveis públicos (o que, insista-se, era a forma original do “auxílio-moradia”
dos magistrados, jamais honrada no âmbito da União, senão para os ministros dos
tribunais superiores, em Brasília).
A remuneração de agentes públicos
consubstancia matéria que pode e deve ser definida pela população, por meio de
seus representantes legítimos, com a maior transparência possível, observadas
as balizas constitucionais. Professores, policiais e fiscais de tributos são
essenciais ao funcionamento estatal; e dizer que devem ser bem pagos é de
inequívoca verdade. Deve-se ter cuidado, porém, para que tal verdade não seja
instrumentalizada como demagogia promocional. Avaliar e comparar rendimentos de
categorias diversas de servidores públicos exige critério, distanciamento e
análise de conjunto. Assim é que, por exemplo, apesar da essencialidade de suas
funções, do nível de responsabilidades que os vincula (inclusive na dimensão
criminal) e do rigor único na respectiva seleção, juízes não contam com
direitos sociais comezinhos noutras categorias profissionais, como limitação de
jornada, adicionais de horas extras, adicionais noturnos, adicional por tempo
de serviço, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou mesmo repouso semanal
remunerado (considerando-se que, se houver sentenças a prolatar, deverá
elaborá-las inclusive em finais de semana e nos feriados, observando os prazos
legais, sem qualquer “compensação”).
Diversas profissões — inclusive públicas —
possuem, além das parcelas citadas, vantagens específicas, como jornadas
reduzidas (caso dos advogados, privados e públicos, dos jornalistas, dos
engenheiros e dos bancários), aposentadorias especiais (caso dos policiais) e
toda a sorte de gratificações, adicionais e prêmios. Tais vantagens são
inegavelmente justas, porque (a) baseadas em peculiaridades dessas profissões,
(b) derivam de lutas categoriais históricas e (c) decorrem de leis ou de
acordos ou convenções coletivas de trabalho. E são “morais”? São. Porque, nos
Estados de Direito, a Constituição e as leis delineiam os horizontes da
moralidade pública. Não há boa moralidade fora dos parâmetros constitucionais
ou legais.
Pois bem. Diversamente do que se dá nos
demais ofícios, juízes guardam a especial restrição quanto ao exercício de
quaisquer atividades paralelas que substancialmente lhes ampliem a remuneração.
Podem tão-só exercer um cargo de magistério, e apenas um, nada mais. Além
disso, enquanto no Brasil segue sem regulamentação o imposto federal sobre
grandes fortunas — no texto constitucional desde 1988 — e os lucros e
dividendos gerados pela atividade empresarial continuam inexplicavelmente
livres da incidência de Imposto de Renda, os membros da magistratura e do
Ministério Público da atualidade submetem-se aos mesmos regimes previdenciário
e fiscal de todos os demais cidadãos, sem quaisquer distinções. Quanto ao IRPF,
são descontados diretamente na fonte, com abate mensal de cerca de um terço de
seus rendimentos brutos. Quanto ao regime previdenciário, desde o segundo
semestre de 2013, todos os novos juízes e membros do Ministério Público
passaram a se sujeitar basicamente às mesmas regras do Regime-Geral de
Previdência Social, de modo que, ao se aposentarem, não receberão, da União,
dos estados ou do Distrito Federal, mais do que o próprio teto do RGPS (isto é,
cerca de R$ 5,5 mil por mês). Para complementarem essa renda, terão de recolher
mensalmente para fundos diversos, públicos ou privados.
De outra parte, a remuneração dos juízes e
membros do Ministério Público é a mais transparente dentre todos os agentes
políticos. Seguindo as disposições da Lei de Acesso à Informação, todas as
despesas dos tribunais — incluindo a integralidade dos seus subsídios (isto é,
seus “salários”) e quaisquer vantagens adicionais — são publicadas na internet,
com franco acesso público, ainda que em detrimento da privacidade e da
segurança dos seus membros. São esses os dados que costumam ser ardilosamente
manipulados em fake news, fazendo com que valores extraordinários — como são as
férias indenizadas (quando o são) e o seu terço constitucional, o 13º salário e
antigos passivos finalmente quitados — sejam “vendidos” como remunerações
mensais ordinárias, para então se cunhar midiaticamente o “marajá” do Poder
Judiciário. E não são poucos os que, de chofre, “compram” esse discurso, ora
por ingenuidade, ora pela sanha sensacionalista ou, ainda, por pura demagogia
política. Inconsequência, em uma ponta, e má-fé na outra.
Não há boa Justiça sem bons juízes. Toda
profissão é única e guarda seus dramas e encantos. A magistratura tem difícil
termo de comparação, porque julgar o semelhante — e fazer valer o julgado, com
toda a força do aparato estatal — envolve a difícil ciência (dir-se-ia mesmo,
talvez, a arte) de identificar, interpretar e fazer cumprir concretamente os
mais importantes valores de convivência de uma nação. Vida, liberdade, honra,
propriedade, igualdade, justiça social e toda a incomensurável riqueza de suas ordens
valorativas: essa é a matéria-prima do trabalho dos poucos milhares de juízes e
juízas que fazem valer a ordem jurídica brasileira em todo o território
nacional. A definição do regime remuneratório de quem guarda tamanhas
responsabilidades e se sujeita a tantas abstenções interessa não apenas a eles,
juízes, mas a todos os cidadãos, porque é elemento fundamental para a definição
da sua própria independência. Isto não está dito por nós, nem provém do nosso
tempo; foi dito, na sua origem mais recente, pelos pais da maior democracia do
nosso tempo. Foi dito por Madison, Hamilton e Jay, em vários dos 85 ensaios
publicados em favor da aprovação da Constituição dos Estados Unidos, antes e
depois dela, elaborados com base nos debates travados durante o ano de 1787, na
Convenção Constitucional da Filadélfia, e recolhidos na conhecida obra O
Federalista (The Federalist Papers), verdadeiro ícone da cultura
jurídico-política ocidental.
Para a garantia do cidadão, o juiz — que
deverá decidir sobre os direitos de cidadania com isenção e destemor — deve ter
garantias. A Constituição de 5/10/1988 apontou-as no artigo 95: vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. E associada a essa garantia
republicana, sobreveio, com a Reforma Administrativa de 1998 (EC 19), o direito
constitucional à revisão geral anual das remunerações no serviço público,
correlata e contemporânea à fixação dos subsídios da magistratura e do
Ministério Público em parcela única. E, no entanto, o que se vê, neste momento
histórico, é que o valor real dos subsídios da magistratura, relativamente
àquele valor fixado em parcela única no primeiro lustro dos anos 2000, já
experimenta uma perda inflacionária de aproximadamente 40%. Onde está, pois, o
direito constitucional desses juízes? E, por conseguinte, onde está a garantia
do cidadão, se o Poder Judiciário vive, no particular, refém dos humores
políticos do parlamento?
Estamos muito distantes da efetividade
judiciária desejada, mas não se pode dizer que haja descumprimento de deveres
institucionais. É sempre bom lembrar que o Judiciário brasileiro, com quase 30
milhões de processos baixados por ano, segue como o mais produtivo do planeta.
E em todas as suas instâncias. Em média, cada juiz brasileiro resolve quase
seis processos por dia — não há qualquer nação que alcance números próximos.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal julgou em 2017 mais de 123 mil processos
anuais, a Suprema Corte dos EUA decidiu cerca de 8 mil demandas. No Reino
Unido, não se chega a uma centena de ações por ano.
Em grande parte, o debate formado sobre
remuneração do Judiciário anima-se na orientação geral e saudável de repúdio
popular à corrupção e à apropriação privada das riquezas nacionais. A imprensa
nacional mantém-se como pilar essencial das estruturas democráticas,
angariando, apresentando e buscando reflexão acerca de informações relevantes,
como a remuneração de todos os agentes públicos. Não se trata aqui de
estabelecer simplificações monológicas de eleição de aliados ou inimigos
corporativos, mas de chamar a uma reflexão mais rica e profícua. E, para mais,
juízes e membros do Ministério Público jamais estarão imunizados de críticas
nem devem receber cheque em branco para fixação de suas remunerações. Se
queremos, realmente, levar a sério as novas orientações de trato adequado do
poder público, devemos ter claro que a crise ética nacional não vem do
Judiciário, mas nele encontra sérios exemplos de combate eficaz. Juízes e
juízas estão muitíssimo mais próximos da materialização instrumental desses
novos valores que partícipes de maltratos públicos.
De outro turno, fato é que, desde a
instituição dos subsídios em parcela única, os membros do Judiciário e do
Ministério Público jamais reivindicaram “aumento”, na acepção estrita da
palavra. Têm pedido, sim, a parcial reposição das perdas inflacionárias, ante o
patente descumprimento do comando constitucional de revisão anual daqueles
mesmos subsídios. E têm logrado pouco sucesso, o que nos leva ao quadro atual:
a magistratura nacional começa a se reconhecer como alvo explícito de uma
prática exclusiva, inédita e sistemática de estrangulamento de todo um Poder de
Estado, a partir de um ignóbil — e inconstitucional — arroxo remuneratório.
Deveria calar-se? Há pouco, uma “carta aberta” subscrita por mais de 18 mil
juízes e membros do Ministério Público, originalmente deflagrada pela
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, revelava o
inevitável: não pretendem se calar.
Todo o quadro atual obriga que grande parte
do trabalho de representantes das instituições (presidentes de tribunais e
dirigentes associativos) passe a ser o de implorar, nos corredores do Executivo
e do parlamento, o simples cumprimento da letra da Constituição. Onde está a
independência?
Além de produzir dolorosos problemas individuais,
o boicote ao Judiciário tem consequências institucionais perigosas. A
irredutibilidade de vencimentos guarda o valor histórico internacional de
assegurar a independência da função judicante. Quando é reiteradamente
descumprida e acompanhada de amputações orçamentárias, aprofunda-se o cenário
de ruptura de convivência institucional. Há, cada vez mais claramente, um
escancarado esforço de inviabilização de todo um Poder de Estado que
evidentemente compromete o ideal constitucional de separação, harmonia e
interindependência entre os Poderes da República.
Assim como os protestos de 2013 não eram por
apenas 20 centavos, mas por moralidade pública, a questão do modelo
remuneratório das magistraturas nacionais transcende o paupérrimo discurso das
verbas singulares, aliás insignificantes, quando comparadas aos verdadeiros
desvios públicos que o próprio Poder Judiciário tem revelado. Diz com a própria
independência das juízas e dos juízes brasileiros.
Do mesmo modo, a luta séria pelo
aperfeiçoamento ético das finanças públicas não se produz a partir de uma moral
ocasional, seletiva e oportunista, com ares de insinceridade. Há pouco, a Folha
de S.Paulo divulgava que o relator da comissão especial que analisa o PL
6.726/2016 (a “lei do extrateto”) — áspero crítico do “auxílio-moradia” pago a
juízes que têm imóveis próprios onde exercem jurisdição — tem imóvel próprio em
Brasília... e recebe o “auxílio-moradia” dos parlamentares. Onde está a
coerência? E a quem serve o discurso que não se reflete no agir privado?
Há que ter toda cautela e rigor com a
adequação remuneratória de agentes públicos, é certo. Mas isso pouco ou nada
significa se tais cuidados não se fizerem acompanhar pelo necessário zelo para
com as funções últimas da atividade judicante e das garantias constitucionais
que a cercam. Convém, sim, discutir um modelo remuneratório único para toda a
magistratura nacional, que não permita assimetrias federativas ou parcelas
ordinárias que não se justifiquem nacionalmente. Mas convém, ainda antes,
combater o uso de estruturas de poder para retaliar ou inviabilizar o exercício
autônomo e independente dos agentes do Poder Judiciário e do Ministério
Público.
As magistraturas têm se dedicado ao combate
dos piores males nacionais: a corrupção endêmica, o despotismo das potências
econômicas, a injustiça social. Por que, agora, passam a ser repentinamente
difamadas, com ódios incomuns, nos principais veículos de comunicação do país?
Em nossa capengante democracia, será melhor
recusar o conforto das suposições de que algo dessa monta possa ser por acaso.
Geralmente não é. Voltemos então a Jay, Madison e Hamilton: “O que é o próprio
Governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem
anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por
anjos, o Governo não precisaria de controles externos nem internos”. Que venham
os controles, porque são inerentes à República. Mas que sejam recíprocos e
proporcionais, porque não há anjos entre nós. O controle absoluto e midiático,
que faz exultar o público circundante, não é próprio das democracias. É próprio
dos verdugos.
Rodrigo Trindade é presidente da Associação dos Magistrados da Justiça
do Trabalho da 4ª Região (Amatra IV).
Guilherme Feliciano é presidente da Associação Nacional dos Magistrados
da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Nenhum comentário:
Postar um comentário