terça-feira, 24 de janeiro de 2017

COLUNA - "JUÍZO DE VALOR" - SITE JOTA - E quem me julga, sabe o que de mim?


Dando continuidade ao nosso projeto, compartilhamos com nossos leitores a coluna: "JUÍZO DE VALOR" do site JOTA, escrita pelo Juiz do Trabalho, Guilherme Feliciano.


http://jota.info/colunas/juizo-de-valor/e-quem-julga-sabe-o-que-de-mim-23012017

No dia 23 de janeiro de 2017 foi tema da coluna reflexões sobre o perfil do magistrado que o CNJ vem traçando nos últimos anos.

A matéria convida os leitores à reflexão sobre a transformação dos processos em números frios sem considerar as necessidades dos “seres humanos” que buscam a Justiça; bem como sobre as mazelas que a “disciplina judiciária” pode trazer aos julgamentos, uma vez que os casos concretos devem ser analisados com todas as suas especificidades e, nem sempre, caro leitor, a jurisprudência cristalizada pelos Tribunais Superiores é a solução justa para determinada demanda.


"E quem me julga, sabe o que de mim?




“Você, caro leitor, muito provavelmente tem ou já teve algum processo judicial tramitando no Poder Judiciário brasileiro. As estatísticas não mentem: em 2014, tramitaram no Brasil nada menos que 99,7 milhões de processos judiciais, dos quais 91,9 milhões – 92% do total – encontravam-se no primeiro grau de jurisdição.

Para uma população de 190.755.799 habitantes, segundo o último censo, isto representaria nada menos que 0,52 processo para cada brasileiro. Considerando-se que todo processo judicial envolve ao menos duas pessoas (autor e réu), teríamos algo como toda a população brasileira reclamando algo ou se defendendo de algo nas barras dos tribunais…

Por outro lado, sabemos todos que é fácil e saboroso o discurso da “morosidade” do Poder Judiciário. Sabemos o quão simples é dizer que os juízes devem julgar mais e mais rapidamente – e alguns segmentos do Judiciário realmente são especialmente lentos (no primeiro grau da Justiça Estadual, tirantes os juizados especiais, o grau de congestionamento era de 80% em 2014) −, dando concreção ao princípio constitucional da duração razoável do processo, etc. etc.

Mas você já pensou sobre como isto pode impactar na sua causa, nos seus interesses, na sua vida? Dizendo de outro modo: qual o perfil de magistrado que você gostaria de ver debruçado sobre o seu litígio? Interessar-lhe-ia um juiz que examinasse, com alguma demora, os argumentos e as provas dos autos, preocupando-se com as várias dimensões da lide sociológica e com um equacionamento razoavelmente justo (e, portanto, minimamente sensível aos dramas pessoais envolvidos na demanda)? Ou, ao revés, um juiz que se importasse basicamente com os seus próprios números, de modo que o seu processo seria basicamente um a mais a “baixar”, entre outros tantos milhares de um estoque inacabável?

A pergunta, feita nesses termos, revela uma faceta perigosa das políticas judiciárias que têm sido desenvolvidas para a gestão nacional do Poder Judiciário, que incumbe constitucionalmente ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E algumas normativas expedidas por aquele órgão dão bem a dimensão do que o CNJ parece esperar do magistrado. E, portanto, do que ele tendencialmente será, caro leitor, quando estiver julgando a sua causa.

Para não nos perdermos em elucubrações sem fim, vamos nos ater a apenas uma dessas normativas: a Resolução n. 106, de 6 de abril de 2010, que “[d]ispõe sobre os critérios objetivos para a aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau”.  Essa é uma resolução especialmente importante para os juízes do país, porque indica quais seriam os critérios objetivos a guiar os tribunais no momento em que decidem quais juízes, por seus méritos (e não meramente por sua antiguidade), devem progredir na carreira. Porque, como sempre disse o Ministro Ayres Britto, a Magistratura constitui o único poder profissionalizado da República, já que se organiza em carreira; e, como em qualquer carreira, os juízes também querem galgar todos os degraus possíveis. Para que possam evoluir em sua carreira, e para que possam fazê-lo por merecimento – já que, sabemos bem, juízes constitucionalmente só podem ser promovidos por antiguidade ou merecimento (artigo 93, II, CF) −, o que devem fazer os juízes? Como devem julgar? Quem nos dá essa resposta, hoje, é a Resolução CNJ n. 106. E talvez o teor desta resposta esteja a merecer uma nova reflexão. Vejamos.

Segundo a Resolução CNJ n. 106, as promoções por merecimento de magistrados em 1º grau e o acesso para o 2º grau serão realizadas em sessão pública, em votação nominal, aberta e fundamentada (art. 1º), observadas, basicamente, as seguintes premissas (art. 4º): (a) desempenho (i.e., aspecto qualitativo da prestação jurisdicional); (b) produtividade (i.e., aspecto quantitativo da prestação jurisdicional); (c) presteza no exercício das funções; (d) aperfeiçoamento técnico; e (e) adequação da conduta ao Código de Ética da Magistratura Nacional. A avaliação de tais critérios deve considerar, no mínimo, os últimos vinte e quatro meses de exercício do magistrado. E, dentre as cinco balizas, chamam especialmente a atenção os critérios de aferição relativos ao desempenho e à produtividade.

Quanto ao desempenho (aspecto qualitativo da jurisdição prestada), avaliar-se-ão, nas decisões do magistrado, a sua redação, a sua clareza, a sua objetividade, a “pertinência” da doutrina e da jurisprudência, quando citadas, e, por fim, o “respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores” (art. 5º, “e”). Já quanto à produtividade (aspecto quantitativo da jurisdição prestada), serão levados em conta essencialmente dois parâmetros: o volume de produção do juiz (por exemplo, o número de audiências realizadas, o número de conciliações, o número de decisões interlocutórias proferidas, o número de sentenças, o número de acórdãos e decisões em substituição ou auxílio no 2º grau ou em turmas recursais e/ou o tempo médio do processo na unidade) e, para mais, a estrutura de trabalho a que o juiz está sujeito (envolvendo aspectos como o compartilhamento das atividades na unidade jurisdicional com outro magistrado, acervo e fluxo processual existente na unidade jurisdicional, cumulação de atividades, competência e tipo do juízo, etc.).

Nesses termos, ainda quanto à dimensão quantitativa da jurisdição, considerar-se-á, na avaliação da produtividade, a média do número de sentenças e audiências do juiz avaliado, em comparação com a produtividade média de juízes de unidades similares “utilizando-se, para tanto, dos institutos da mediana e do desvio padrão oriundos da ciência da estatística, privilegiando-se, em todos os casos, os magistrados cujo índice de conciliação seja proporcionalmente superior ao índice de sentenças proferidas dentro da mesma média” (art. 6º, par. único).

É certo, enfim, que, para a formação do ranking de merecimento em cada tribunal, será utilizado um sistema de pontuação-padrão para cada um dos cinco critérios elencados no art. 4º da Resolução CNJ n. 106, observada a seguinte pontuação máxima (v. art. 11): (i) para o desempenho, 20 pontos; (ii) para a produtividade, 30 pontos; (iii) para a presteza, 25 pontos; (iv) para o aperfeiçoamento técnico, 10 pontos; e (v) para a adequação da conduta ao Código de Ética da Magistratura Nacional, 15 pontos.

Com alguma simplificação, diríamos, portanto, que, para obter boa classificação entre seus pares, quando estiver em condições de pleitear promoção ou acesso por merecimento (ou seja, quando estejam atendidos os pressupostos do art. 3º, I a IV, da Resolução n. 106), o juiz deve fundamentalmente se preocupar com dois predicamentos. Deverá atentar para a sua produtividade: quanto mais “produzir” – isto é, quantas mais audiências, sentenças, acórdãos, conciliações e/ou decisões interlocutórias produzir, em comparação com seus pares das “unidades similares” (art. 6º, par. único) −, melhor classificado estará; poder-se-á esperar, inclusive, que certo juiz acompanhe a produção de seus “concorrentes” mais imediatos, para assim tomar decisões racionais sobre a conservação ou a ampliação da sua produção bruta de decisões judiciais e afins, conforme as características da sua realidade (“mercado”?). Além disso, deve ocupar-se com a qualidade de suas sentenças. Mas isto significará, no marco da Resolução CNJ n. 106, basicamente escrever bem, objetiva e claramente (qualidades que, convenhamos, o juiz presumivelmente já possuirá, mesmo porque preteritamente aprovado em difícil concurso de provas e títulos); para além disto, deverá ainda citar doutrina e jurisprudência “pertinentes” – lógica ou ideologicamente pertinentes? – e, ademais, deverá respeitar as súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores (ainda que, a teor do artigo 103-A da Constituição, apenas as súmulas vinculantes aprovadas por dois terços dos membros do STF vinculem os demais juízes, e não todas as súmulas do STF e dos tribunais superiores).

Ora, este modelo de seleção por merecimento talvez pudesse ser resumido com maior consistência. Façamos uma tentativa.

Poderíamos dizer, por exemplo, que, com esse modelo, colima-se conceber um processo racional e linear de produção organizada de decisões judiciais, baseado na estandardização das rotinas de trabalho (vide o PJe e os seus intermináveis fluxogramas) e dos conteúdos a produzir, intensificando e homogeneizando o próprio trabalho judiciário. A par disso, as próprias escolas judiciais reproduziriam conteúdos de educação em massa, uniforme e acriticamente, em torno de ideias já consagradas em súmulas e precedentes, para assim proporcionar a formação de classes de juízes mais adaptados a essa nova realidade das demandas em massa, carente de respostas céleres e igualmente massivas.

O que lhe parece, querido leitor? É razoável?

Antes de responder, permita-me apenas lhe dizer que essa última descrição, na verdade, não é nova. É, com algumas adaptações, a descrição de George Ritzer (Contemporany Sociological Theory. 3ª ed. New York: McGraw-Hill, 1992) para o chamado fordismo. Bastará, na primeira parte do parágrafo anterior, substituir a expressão “decisões judiciais” pela palavra “mercadoria”; e, da mesma forma, trocar a expressão “trabalho judiciário” por “trabalho produtivo”, ou reduzi-la para “trabalho” simplesmente.

O fordismo, com efeito, é um modelo de produção industrial baseado na produção em larga escala, com especialização do trabalho e organização de linhas de montagem.  Compreendê-lo-íamos melhor, aliás, com a expressão fordismo-taylorismo, tendo em conta que o que Henry Ford (1863-1947) fez com a sua indústria automobilística, a partir de 1913, foi basicamente operacionalizar as principais ideias de Frederick Taylor (1856-1915), combinando-as às suas próprias e implementando-as em um processo produtivo de grande escala.

Todos os elementos necessários para uma produção uniforme, massificada e célere estão presentes na lógica da Resolução CNJ n. 106 (e assim são institucionalmente comunicados aos juízes, especialmente àqueles mais novos, ingressantes dos quadros da Magistratura após 2010):

(a) meritocracia ligada à alta produtividade e à presteza no exercício da jurisdição (“produzir” muito e rapidamente);

(b) (re)produção de conteúdos estandardizados (padronizados), a partir da inteligência das súmulas dos tribunais superiores e dos precedentes judiciais (veja-se, ainda mais recentemente, o que diz o artigo 489, §1º, do novo Código de Processo Civil), com pouquíssimos espaços para que o juiz “inove” em primeiro ou segundo graus; e

(c) lógica motivacional sub-repticiamente associada, na medida em que o juiz refratário ao modelo, que acaso decida “repensar” as questões jurídicas (de acordo com o seu sentimento de justiça para o caso concreto) e indagar caso a caso do cabimento ou não das inteligências das súmulas e precedentes, produzirá menos (porque a reflexão consumirá mais tempo), fugirá amiúde da decisão-padrão e, com tudo isto, terá menos “merecimento”, na comparação com os seus pares, se os demais estiverem devidamente doutrinados sob as regras da Resolução CNJ n. 106.

No fundo, amigo leitor, a quem internalize com plenitude os valores da Resolução CNJ n. 106, especialmente quanto aos artigos 5º, “e”, 6º e 7º, II, o que menos importará será o conteúdo de justiça aplicável ao seu litígio concretamente considerado. Havendo súmula de jurisprudência para a questão jurídica subjacente, essa será a resposta “certa” a dar, ainda que outras variáveis permitam atinar para um outro equacionamento, quiçá mais equânime (a não ser, é claro, que o juiz esteja disposto a demonstrar um “distinguish”, na linha do que propõe o artigo 489, §1º, VI, in fine, do CPC – o que será cada vez mais incomum). Havendo centenas de casos a julgar naquele mês, o seu será apenas mais um, de uma demanda crescente a que o juiz sofregamente tentará fazer frente, muitas vezes “enxugando gelo”, porque o modelo termina priorizando as demandas individuais; afinal, para a Resolução n. 106 tanto vale uma reclamação trabalhista com réu revel como uma ação civil pública de oitenta volumes, no interesse de milhares de pessoas, porque uma e outra pontuam um único processo na tabela de produtividade.

Ao cabo e ao fim, se certo juiz não der à nossa demanda, perdida entre os quase 100 milhões de processos em trâmite, uma atenção mais cuidada, não poderemos sequer criticá-lo por isto. Porque este é o modelo que tem prevalecido, em todos os tribunais, a partir de uma lógica de “racionalização” da produção judiciária que começou a ser debatida no Conselho Nacional de Justiça entre 2007 e 2009. E à indagação hipotética que um magistrado fizesse, sobre “como posso ser um melhor juiz”, a resposta institucional que lhe seria dada, igualmente hipotética, soaria como isto: produza mais; produza rapidamente; mas apenas reproduza as inteligências dos tribunais superiores.

Talvez você já tenha assistido a um filme clássico de Charles Chaplin, polêmico para sua época (chegou a ser censurado na Alemanha nazista), chamado “Tempos Modernos” (1936). Se ainda não o viu, faça isto. Assista-o. Depois, indague a si mesmo se, de algum modo, a figura de Carlitos trabalhando na linha de montagem pode ser associada à de um juiz contemporâneo. Se deveria estar assim associada. E o que isto pode significar, na prática, em termos de independência judicial – que consubstancia, sem nenhum favor, um dos pilares mais relevantes do Estado Democrático de Direito.

Depois me diga, caro leitor.
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A coluna “Juízo de Valor” não poderia se furtar de registrar o seu lamento pela morte  abrupta do Ministro Teori Albino Zavascki, falecido no último dia 19 de janeiro, em decorrência de desastre aéreo na baía de Paraty. Magistrado, com sólida carreira construída no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, depois no Superior Tribunal de Justiça e finalmente no Supremo Tribunal Federal, publicou obras de referência no campo do Direito Processual Civil, como “Antecipação de Tutela” (Ed. Saraiva) e “Processo Coletivo: Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos” (Ed. Revista dos Tribunais) e também se dedicou à vida acadêmica (Universidade do Vale do Rio dos Sinos). Firme, técnico e absolutamente discreto – no que deveria servir de modelo para tantos de nós −, soube cumprir com destemor as difíceis tarefas que, ao longo da vida, a judicatura lhe destinou. E por destino foi que, nos albores de 2017, teve inesperadamente interrompida a mais tormentosa de todas as suas missões. Aos familiares, nossas profundas condolências. Ao Brasil, nossos votos de que as investigações derivadas da Operação Lava Jato não sejam descontinuadas e nem tampouco comprometidas com essa deplorável perda.

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Gostou da coluna, amigo leitor? Há algum tema do Direito, da Política ou da Economia que lhe pareça obscuro, ou a sobre o qual você gostaria de lançar uma luz, digamos, “diferente”? Sugira-nos. O e-mail está abaixo.


Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP, diluvius@icloud.com.”



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