Conforme anunciamos compartilhamos
com nossos leitores a coluna: "JUÍZO DE
VALOR" do site JOTA, escrita pelo
Juiz do Trabalho, Guilherme Feliciano.
No dia 06 de janeiro de 2017 foi tema da coluna a Reforma Trabalhista.
“Novidades” da reforma trabalhista
Um
futuro repleto de passados
Para quem conhece a insuperável
Germinal, de Émile Zola, as passagens a seguir são bem familiares. Em Germinal,
Zola apresenta uma descrição vívida das condições de trabalho da classe
operária do século XIX, reconstruindo a placitude desumanizante a que eram
reduzidas as comunidades de carvoeiros da época, representadas, no romance, por
minas do norte da França, como Marchienne e Montsou. Seu texto espelha bem as
tendências da sua época (1885): naturalismo, realismo crítico, darwinismo,
marxismo, positivismo comtiano.
Pois bem.
A certa altura, num diálogo entre
as personagens Etienne e Maheu, lê-se o seguinte diálogo:
− A
companhia é rica?
− É, sim. Tem milhões e milhões, nem dá para
contar. São dezenove galerias, treze para exploração e seis para bombeamento de
água e ventilação. Dez mil operários, concessão que se estende por sessenta e
sete aldeias, extração de cinco mil toneladas por dia, uma estrada de ferro que
liga todas as galerias, oficinas e fábricas! Ah! Dinheiro é o que não falta.
Em outra passagem, bem adiante,
lê-se a descrição de uma realidade muito distinta, refletindo a percepção comum
de Etienne, Rasseneur e Souvarine:
O
operário não podia aguentar mais, a revolução não tinha feito mais que lhes
agravar as misérias. A partir de 89, os burgueses é que se enchiam, e tão
avidamente que nem deixavam o resto no fundo do prato para o trabalhador
limpar. Quem poderia demonstrar que os trabalhadores tinham tido um quinhão
razoável no extraordinário aumento da riqueza e bem-estar dos últimos cem anos?
Zombaram deles ao declará-los livres. Livres para morrerem de fome, isso sim,
do que, aliás, não se privavam. Não dava pão a ninguém o votar em malandros
que, eleitos, só queriam locupletar-se, pensando tanto nos miseráveis como nos suas
velhas botinas.
E
noutro momento, sob a cruenta tensão entre o forte e o fraco, o mesmo Étienne
indaga-se:
Teria
Darwin razão, o mundo não seria mais que um campo de batalha, com os fortes
comendo os fracos para a melhoria e a continuidade da espécie? Essa questão o
perturbou, […] Mas uma ideia iluminou suas dúvidas: em seu primeiro discurso,
retomaria sua antiga explicação da teoria. Se fosse preciso que uma classe
destruísse a outra, não seria o povo, cheio de vida, que devoraria a burguesia,
enfraquecida de tanto luxo?
********
Riqueza, pobreza, distribuição de
renda, direitos trabalhistas, lei do mais forte… Onde isto tudo nos leva? E o
que tem a ver com a nossa realidade?
Vejamos.
O Governo Federal encaminhou para
a Câmara dos Deputados, no último mês de dezembro (23/12/2016), o Projeto de
Lei n. 6.797/2016, que pretende promover uma “minirreforma” trabalhista no
Brasil. Havia de ser, originalmente, uma medida provisória, ainda que fossem
absolutamente duvidosos, no caso, os requisitos constitucionais da necessidade
e da urgência (artigo 62, caput, CF); no entanto, após a contrariedade
externada pelas centrais sindicais, entendeu-se por bem encaminhar o projeto
para o Poder Legislativo federal, como naturalmente decorre do artigo 22, I, da
Constituição. Nada obstante, pretende-se que tramite em regime de urgência… “O
Brasil tem pressa”. Resta saber do quê.
O projeto traz diversas
“novidades” que merecem a nossa consideração. No seu âmago ideológico, a ideia
da prevalência do negociado sobre o legislado em relação a diversos direitos
sociais previstos na Constituição, na Consolidação das Leis do Trabalho e em
outras leis federais, como a Lei n. 6.019/1974. Consideremos alguns deles.
Por um lado, as convenções e os
acordos coletivos de trabalho, que são os negócios jurídicos coletivos de
caráter normativo previstos no artigo 611 da CLT (pelos quais “categorias
econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito
das respectivas representações, às relações individuais de trabalho”), ganham
força de lei – e prevalecem sobre quaisquer outras leis − nos seguintes casos:
(a) parcelamento ou gozo de
férias em até três vezes, com pagamento proporcional ao tempo gozado pelo
trabalhador, sendo certo que uma das frações não poderá ser inferior a duas
semanas;
(b) livre pactuação da forma de
cumprimento da jornada de trabalho, desde que não ultrapassado o limite mensal
de 220 horas;
(c) possibilidade de pagamento da
participação nos lucros e resultados quando a empresa divulgar seus balancetes
trimestrais ou no limite dos prazos estipulados em lei para tais balancetes,
desde que seja feito em não menos que duas parcelas;
(d) horas “in itinere” (i.e., o
modo de compensação do tempo de deslocamento entre casa e trabalho nos supostos
de ausência ou insuficiência de transporte público compatível);
(e) intervalo intrajornada
(respeitado o “minimum minimorum” de trinta minutos);
(f) a ultratividade dos
instrumentos coletivos da categoria (o que significa que, afastada a
inteligência da Súmula 277 do TST – como se deu, liminarmente, na ADPF n. 323,
da relatoria do Min. Gilmar Mendes −, a ultratividade dos acordos e convenções
coletivas deverá ser decidida unicamente no âmbito da autonomia privada
coletiva, i.e., dos próprios acordos);
(g) a adesão ao “programa
seguro-emprego”, da Lei n. 13.189/2015, que derivou do “programa de proteção ao
emprego” (PPE) do governo anterior;
(h) o estabelecimento de plano de
cargos e salários;
(i) o regulamento de empresa;
(j) o banco de horas, garantida a
conversão da hora que exceder a jornada normal de trabalho (e não for
compensada) com acréscimo de no mínimo 50%;
(k) o trabalho remoto;
(l) a remuneração por
produtividade; e
(m) o registro da jornada de
trabalho.
Tudo parece, portanto,
extremamente adequado. Saem fortalecidos a democracia, o diálogo social, o
movimento sindical e os direitos trabalhistas. Certo?
Errado.
O artigo 7º, caput, da
Constituição estabelece que o seu rol de direitos sociais “stricto sensu”
compreende “os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social” (g.n.). Dito de outro modo, o chamado
princípio da norma mais favorável tem status constitucional no Brasil, de modo
que, ao menos no caso brasileiro, as convenções e acordos coletivos do trabalho
têm função eminentemente “protetora”: sua finalidade básica é melhorar a
condição do trabalhador (alteração “in meius”).
Parafraseando Jean-Jacques Javillier,
prevalece a ordem pública social, pela qual o “sempre mais” jurídico conduz ao
“sempre melhor” social. Daí que, a rigor, a negociação coletiva deveria servir
para elevar a condição social dos trabalhadores: essa é, constitucional e
historicamente, a sua função social.
É basicamente por isto, aliás,
que o inciso XXVI do mesmo artigo 7º estatui o “reconhecimento” das convenções
e acordos coletivos de trabalho (i.e., do “negociado”): para que esses
instrumentos normativos possam prever condições sociais superiores àquelas
derivadas dos direitos sociais mínimos descritos no artigo 7º.
Excepcionalmente, é verdade, a negociação coletiva poderá reduzir direitos; mas
sempre com a devida contrapartida social (porque se trata de negócio jurídico
coletivo assimilado à transação – de concessões recíprocas −, não às renúncias)
e nas exclusivas hipóteses do texto constitucional: jornada (art. 7º, XIII, in
fine), salário (art. 7º, VI, in fine) e turnos ininterruptos de revezamento
(artigo 7º, XIV, in fine). Somente nesses casos.
Não há, portanto, previsão
constitucional para a flexibilização, via negociação coletiva, do gozo das
férias (art. 7º, XVII, c.c. art. 134/CLT), ou do registro de ponto (art.
74/CLT), ou da participação nos lucros e resultados (art. 7º, XI, 1ª parte,
c.c. Lei n. 10.101/2000, art. 3º, §§ 2º e 4º), ou das horas “in itinere” (art.
58, §2º, CLT, apesar de decisões condescendentes do TST, como, p. ex., no RR n.
414.174/1998.9, rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, in DJU 28.6.2002), ou do
banco de horas (art. 59, §2º, CLT), ou do trabalho remoto (art. 6º, par. único,
CLT), ou do intervalo intrajornada (art. 71/CLT; o próprio TST já reconheceu a
sua estrita vinculação com a saúde do trabalhador, ut Súmula n. 437, II), ou
ainda da remuneração por produtividade (que, nalguns casos, não deve ser sequer
admitida, a bem da dignidade da pessoa humana, como no caso do corte de
cana-de-açúcar: v., p. ex., Processo n. 0001117-52.2011.5.15.0081, Ministério
Público do Trabalho v. Usina Santa Fé, rel. Des. Hélio Grasselli, j. 3.10.2013;
na média diária, o cortador no interior de São Paulo cortava doze toneladas de
cana, caminhava 8,8 quilômetros, desferia 133.332 golpes de facão, fazia 36.630
flexões e giros de corpo e perdia oito litros de água, tudo para manter o seu
ganho por produção, o que era certamente desumano).
Imagine você, leitor, que seus
dois filhos sejam contratados para o desempenho de funções em teletrabalho (=
trabalho remoto) para duas empresas diferentes; uma, digamos, do setor
bancário, e a outra, do comércio varejista. O seu primeiro filho recebe,
processa e organiza, de sua própria casa, informações relativas a clientes do
banco que o contratou. O seu segundo filho, integrado ao departamento pessoal
da empresa que o contratou, faz o
apontamento das horas extras dos comerciários que trabalharam presencialmente
na loja-sede, a partir dos controles de jornada e dos atestados que lhe são
enviados. Nenhum deles sofre controle de ponto formal e ambos se ativam de
segunda a sábado. Suponha, no entanto, que a convenção coletiva que rege as
condições de trabalho dos bancários na respectiva base territorial preveja, a
despeito do artigo 6º, par. único, da CLT, que o teletrabalho prestado sem
controle formal de ponto não configure vínculo empregatício. Já a convenção
coletiva dos comerciários é calada, no particular; não trata do teletrabalho em
nenhuma hipótese. No limite, embora os dois filhos tenham executado atividades
semelhantes, na mesma base territorial, sob as mesmas circunstâncias, um – o
comerciário – terá o vínculo reconhecido pelo seu empregador, com todos os
direitos trabalhistas pertinentes; já o outro – o bancário – não o terá, ante a
falta de registro formal de ponto e o teor da respectiva convenção coletiva.
Haverá ensejo para essas distinções, se o PL n. 6.797/2016 for convertido em
lei. Parece-lhe justo? Ou, ao menos, parece-lhe razoável?
Não é. Malfere o próprio
princípio constitucional da isonomia (artigo 5º, caput, CF). É, ademais, um uso
impróprio das negociações coletivas.
Com efeito, como já advertiu João
de Lima Teixeira Filho (v. SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA,
Segadas; TEIXEIRA, Lima. Instituições de Direito do Trabalho. 22ª ed. São
Paulo: LTr, 2005. v. II. p. 1193-1194), a funcionalidade das negociações
coletivas guia-se por dois pressupostos básicos: em primeiro lugar, aquele
segundo o qual “quão mais rígida é a organização sindical, mais tormentosa é a
negociação coletiva“; e o segundo, aquele segundo o qual “quão mais fortes e
representativos são os sindicatos, menor é a necessidade de intervenção
legislativa“. Daí que, a valer a máxima assim vertida – como, cremos, há de
valer −, a ideia vazada no PL n. 6.797/2016, quanto à prevalência do negociado
sobre o legislado em grande parte dos direitos trabalhistas típicos (para além
do que textualmente autorizou a Constituição), seria oportuna e útil se, a
rigor, o atual quadro sindical brasileiro apontasse para o predomínio de
sindicatos fortes e representativos. É esse o caso? Seguramente, não. A uma, a
organização sindical brasileira é extremamente rígida (vide os incisos II e IV
do art. 8º da CF). E, a duas, a unicidade sindical construiu, no Brasil, uma
estrutural sindical frágil e pouco representativa. Basta ver os números: apesar
da unicidade, o Brasil tem mais de 15.000 sindicatos atualmente – muitos dos
quais criados somente para arrecadas a contribuição sindical obrigatória do
artigo 8º, IV, da Constituição −, alcançando pouco mais de 17% (dezessete por
cento) dos trabalhadores ocupados; já na Alemanha, em que prevalece a
pluralidade sindical, os sindicatos não ultrapassam a casa das dezenas, mas são
muito mais representativos. Já por isso, várias categorias profissionais
brasileiras possuem sindicatos colaborativos ou mesmo “bancados” pelo
empregador, sem qualquer compromisso com a classe laboral que tencionam
representar; é o fenômeno do sindicalismo amarelo. Serão esses os sindicatos a
garantir, sob a égide do PL n. 6.797/2016, que a negociação coletiva represente
avanços no patrimônio jurídico do trabalhador? De certo que não.
Daí que, a nosso sentir, seja
pela literalidade constitucional, seja ainda pela condição hodierna do
sindicato no Brasil, todas aquelas hipóteses de “negociado sobre o legislado”
vaticinadas para além do que a Constituição expressamente autorizou servem
basicamente para transformar a negociação coletiva em um caminho bem azeitado
para a precarização das relações de trabalho e para a flexibilização de
direitos sociais típicos. Logo, padecem do que eu chamaria, se bem-humorado
estivesse, de “inconstitucionalidade uterina”. É dizer: nascerão
inconstitucionais. Ponto final. Ou, mais apropriadamente, ponto-e-vírgula… Ao
menos até que o STF dê a essa história o seu efetivo “ponto final” (que,
esperemos, aproxime-se ao menos do nosso “ponto-e-vírgula”).
Pensemos, por outro lado, na
hipótese do artigo 611-A, VI, da CLT, na redação proposta pelo PL n. 6.797/2016
(art. 1º). A Súmula n. 277 hoje diz que “ [a]s cláusulas normativas dos acordos
coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho
e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de
trabalho”. Consagrou, portanto, a chamada ultratividade das cláusulas
normativas dos acordos e convenções coletivas de trabalho – mesmo após o prazo
pactuado para a vigência desses acordos e convenções −, até o momento em que,
em nova negociação coletiva, as partes interessadas disponham de outro modo.
Mas, como visto, a súmula foi “suspensa” nos autos da ADPF n. 323, ajuizada
pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (conquanto súmulas do
TST não sejam fonte formal do direito, i.e., não tenham função tipicamente
normativa), em medida cautelar exarada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes,
emérito constitucionalista e sócio do Instituto Brasiliense de Direito Público…
Agora, a vingar o PL n.
6.797/2016, as próprias categorias definirão os limites temporais de validade
da norma ou instrumento coletivo de trabalho da categoria (e, inclusive, se, na
ausência de nova previsão, as cláusulas normativas seguirão em vigor após
expirado o prazo de vigência do instrumento coletivo). Isto será bom, talvez,
para os sindicatos profissionais fortes, que conseguirão assegurar, nas
convenções e acordos que celebrarem, a garantia de que os progressos
conquistados em determinada negociação coletiva não expirarão com o tempo, se
as empresas ou sindicatos patronais decidirem “endurecer” na rodada negocial
subsequente. Mas o que dizer dos sindicatos mais frágeis, ou mesmo dos
sindicatos “amarelos”, já reportados acima? As parcas conquistas de eventual
negociação pretérita não tardarão a cair, pelo mero decurso de tempo, ao menor
sinal negativo da economia; e, para tanto, bastará que as empresas ou os
sindicatos patronais recusem-se a negociar novo acordo ou convenção e, subsequentemente,
recusem-se a submeter o litígio à Justiça do Trabalho. Afinal, reza o artigo
114, §2º, da Constituição, que, “[r]ecusando-se qualquer das partes à
negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo,
ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho
decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao
trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”. Sem “comum acordo”,
portanto, nada feito… E às favas com as “disposições convencionadas
anteriormente”, que, pelo texto constitucional, deveriam ser “respeitadas”.
Pensará você, nobre leitor, o
seguinte: “ora, neste caso, os trabalhadores que entrem em greve!” Mas com que
respaldo? O de um sindicato frágil ou cooptado?
A verdade é que, se o sindicato
não for forte o suficiente para inserir cláusulas de ultratividade nas suas
negociações prévias, muito provavelmente não conseguirá, adiante, instar a
categoria econômica a preservar, contra o seu interesse, direitos convencionais
anteriores. Em síntese: quanto às conquistas pretéritas das diversas categorias
profissionais, o que teremos, na grande maioria dos casos, será a famosa
“ladeira abaixo”. E não apenas pela incapacidade de reafirmar tais conquistas
nas suas novas negociações; assim será, sobretudo, pela confortável condição de
quem, do lado oposto, não precisará, para se livrar de determinado custo, mover
uma palha sequer. Bastará não negociar; não admitir a intervenção da Justiça do
Trabalho; e aguardar placidamente.
Mas não é só.
Além disso, o PL n. 6.797/2016
pretende regulamentar o artigo 11 da Constituição, prevendo a eleição de um
representante dos empregados em toda empresa com mais de 200 empregados, como
manda o texto constitucional. Estabelece, porém, que o mandato será de dois
anos, com possibilidade de reeleição e com garantia de emprego entre o registro
da candidatura e os seis meses posteriores ao término do mandato. Convenções e
acordos coletivos poderão ampliar para até cinco o número de representantes dos
trabalhadores por estabelecimento. Quanto às suas funções na empresa, o projeto
prevê que tais representantes terão “a garantia de participação na mesa de
negociação do acordo coletivo de trabalho” (i.e., nos negócios jurídicos
coletivos que envolvam empresa e sindicato profissional), por um lado, e, por
outro, o dever de atuar na conciliação de conflitos trabalhistas no âmbito da
empresa, inclusive quanto ao pagamento de verbas trabalhistas, no curso do
contrato de trabalho, ou de verbas rescisórias.
Regulamentar o artigo 11 da
Constituição é, por si mesmo, um avanço. A figura do “representante de fábrica”
(na verdade, de qualquer estabelecimento com mais de 200 empregados) dormita na
letra constitucional há vinte e oito anos, sem se despregar do papel.
Ressalvem-se, aqui, as raras iniciativas dos sindicatos profissionais que, por
meio da negociação coletiva, buscaram dar efetividade ao preceito (como, p.
ex., os metalúrgicos do Vale do Paraíba paulista); mas, ainda assim, reduzindo
essa representação de raiz constitucional à própria representação sindical, o
que não reflete exatamente o espírito do texto constitucional (que tratou das
entidades sindicais no artigo 8º; logo, no artigo 11, cuida de um tipo de
representação obreira que não há de ser necessariamente sindical). Nisto, o PL
n. 6.797 foi feliz: no texto proposto para o artigo 523-A/CLT, dirá que “a
eleição deverá ser convocada por edital, […] o qual deverá ser afixado na
empresa, com ampla publicidade, para inscrição de candidatura, independentemente
de filiação sindical, garantido o voto secreto, sendo eleito o empregado mais
votado daquela empresa” (g.n.).
Mas o “avanço” para por aí.
A Constituição reza que a
representação dos trabalhadores nos estabelecimentos terá por finalidade exclusiva
a de “promover-lhes o entendimento direto com os empregadores”. Isso não emerge
claramente do texto do projeto de lei. A uma, é certo que “participar” da mesa
de negociação nos acordos coletivos de trabalho não é, a rigor, função
constitucional do representante de fábrica, mas, sim, do próprio sindicato, nos
termos do art. 8º, VI, CF. A duas, “atuar na conciliação de conflitos
trabalhistas no âmbito da empresa, inclusive quanto ao pagamento de verbas
trabalhistas, no curso do contrato de trabalho, ou de verbas rescisórias”,
parece reservar aos representantes de fábricas uma função menor, distante da
hipótese constitucional originária; sua função passa a ser a de conferir
quitação à empresa em relação aos diversos direitos que possam vir a ser
reclamados no curso do contrato e no seu término (inclusive verbas
rescisórias). Com isso, elide-se a necessidade de intervenção do sindicato,
notadamente nas rescisões (art. 477, §1º, CLT), facilitando as extinções de
contratos de trabalho, por um lado, e por outro, sinalizando para um novo
mecanismo de “homologação” dessas rescisões, fora do Poder Judiciário, que
certamente abrigará fraudes.
Além disso, de mais relevante, o
PL n. 6.797/2016 fixa em seis mil reais a multa por empregado não registrado
(art. 47/CLT), acrescido de igual valor em caso de reincidência (entretanto, no
caso de empregador rural, microempresas e empresas de pequeno porte, a multa
será de apenas mil reais). Altera a Lei n. 6.019/1974 (Lei do Trabalho
Temporário), para admiti-lo por até cento e vinte dias, podendo ser prorrogado
uma única vez pelo mesmo período (i.e., o trabalhador temporário poderá
permanecer na mesma empresa, em atividade-fim, sem gerar vínculo empregatício,
por duzentos e quarenta dias; hoje, não pode fazê-lo por mais que seis meses).
E passa a considerar regime de tempo parcial de trabalho (art. 58-A/CLT) aquele
cuja duração seja de trinta horas semanais, sem possibilidade de horas extras
semanais, ou aquele com jornada de vinte e seis horas semanais ou menos, que
pode ser suplementado com mais seis horas extras semanais (atualmente a CLT
fala em vinte e cinco horas semanais, com possibilidade de mais duas horas
extras semanais). Nenhum segredo: exceto quanto àquela primeira alteração,
mudou-se para flexibilizar mais. Permitir, com maior largueza, a utilização de
hipóteses contratuais que deveriam ser residuais, porque geradores de menos
direitos. Nada de novo sob o sol: tudo isto já vimos.
Por isso, afinal, o título da
coluna de hoje. E a referência inicial ao Germinal de Zola. “Pegou”, leitor?
Veja só.
A “genética” do Direito do
Trabalho sempre revelará a sua função tuitiva. A ideia de mínimos jurídicos
assegurados por lei (salário mínimo, repousos semanais e anuais, intervalos
intra e entrejornadas, limites de jornada etc.) veio a lume para justamente
conferir alguma equipotência nas relações entre empregadores e trabalhadores
hipossuficientes. Ou, o que é o mesmo: veio a lume para evitar, na feliz
expressão de Étienne, que o mundo do trabalho se converta em um campo de batalha
darwinista, na qual prevalecerá sempre a condição do mais forte. Mais: são os
direitos trabalhistas constitucionais e legais mínimos aqueles que asseguram,
afinal, que parte da riqueza gerada pela produção/circulação de bens e serviços
seja segura e necessariamente distribuída entre os trabalhadores.
Quando a maior parte desses
direitos volta ao campo da livre negociação (ainda que coletiva), faltando-nos
ainda uma organização sindical universalmente pujante e representativa,
descem-se alguns degraus na escada da civilidade. Onde a lei já não garante
mínimos, os seus padrões voltam a ser disputados pela força. E, não raro, em
condições de assimetria.
Isso não parece ser o futuro.
Aparentemente, esse foi o nosso passado.
***********
Amigo leitor, não gosto muito de
me repetir. Mas peço a sua licença, nesta segunda edição da coluna “Juízo de
Valor”, para repetir o que fiz constar da primeira: nossa finalidade maior, ao
abrir este espaço, foi a de estabelecer o bom debate em torno das grandes
polêmicas nacionais e internacionais que se precipitam nos meios de
comunicação, acerca do direito, da política, da economia e das relações
sociais. É dizer: entender, dissecar e racionalizar – tanto quanto seja
possível − as polêmicas públicas do país e do mundo. “Racionalizá-las”, no
sentido de tentar enxergá-las com alguma(s) racionalidade(s), em um debate
franco, transparente e objetivo; apartidário, mas jamais “neutro”. A ideia
principal, no entanto, é a de que esta coluna seja construída com você. Indique
as polêmicas e os temas que quer ver enfrentados. O e-mail está abaixo.
…A propósito, parte dos excertos
reproduzidos no início, extraídos do texto original de Germinal, são de minha
livre tradução. Espero que gostem. Até a próxima quinzena!
Guilherme
Guimarães Feliciano - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté,
é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade
Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito
Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP,
diluvius@icloud.com”
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