Reforma Trabalhista incongruente
Reforma é totalmente inconsistente e efeitos serão
contrários aos pretendidos
Cássio Casagrande
29 de Maio de 2017 - 08h43
Crédito: Jonas Pereira/Agência
Senado
O projeto de reforma trabalhista
em curso no Congresso Nacional foi apresentado com base em três pressupostos:
flexibilização das normas para aumento da formalização e alargamento da base
previdenciária, prevalência da negociação coletiva sobre o direito legislado e
diminuição da insegurança jurídica nas relações de trabalho. De acordo com o
poder executivo e as lideranças parlamentares que patrocinam a reforma, as
alterações na CLT não eliminariam ou prejudicariam direitos dos trabalhadores,
pois o seu escopo seria o de “modernizar” as relações entre capital e trabalho.
Uma análise acurada do PLC
38/2017, no entanto, revela que a reforma é totalmente inconsistente e
incongruente com seus supostos fins, na medida em que o projeto contém
dispositivos que produzirão efeitos exatamente contrários aos desejados por
aqueles que o sustentam: a reforma trabalhista provocará a “fuga” da carteira
assinada (diminuindo a base das contribuições sociais), enfraquecerá a
negociação coletiva e o poder de barganha dos sindicatos e aumentará
consideravelmente a insegurança jurídica nas relações laborais. E no seu conjunto, resultará em perda
considerável de direitos dos trabalhadores, com claro retrocesso social. Para
concluir isto, basta analisar os seguintes pontos do projeto de lei:
Informalidade
Os autores do projeto de reforma
trabalhista defendem a necessidade de flexibilizar o contrato para facilitar a
formalização. Ocorre que em alguns pontos o projeto em questão vai muito além
da flexibilização, pois chega a retirar a natureza trabalhista da relação entre
patrão e empregado, convertendo-a em um contrato de natureza civil. Veja-se o
que dispõe o artigo 442-B deste projeto: “A contratação do autônomo, cumpridas
todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou
não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3o. desta CLT”. Na
prática, isto significa que o empregador poderá contratar o trabalhador como
autônomo (sem direitos sociais como férias, limites de jornada e 13o. salário),
e ainda que este compareça todo dia a empresa, bata cartão de ponto e cumpra
ordens, mesmo assim, ele não terá carteira assinada e, pior, não poderá
questionar esta fraude na Justiça do Trabalho (o que é uma clara
inconstitucionalidade pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição). A
consequência prática é evidente: diminuição de registro em carteira e evasão de
contribuição para o INSS. É chocante perceber que sequer nos EUA (país com legislação
laboral flexível sempre invocado pelos arautos da reforma) isto seria
admissível, pois em qualquer situação trabalhadores autônomos, mesmo com
contrato formal assinado (independent
contractors) podem questionar no judiciário federal a sua condição de
empregado (employee) de modo a
invocar a nulidade do contrato civil e incidência da lei trabalhista (Federal Labor Standards Act – FLSA).
Este entendimento é assegurado pela Suprema Corte dos EUA desde 1944 a partir
do caso NLRB v. Hearst Publications (322,
U.S. 111).
A figura do trabalho intermitente
(art. 452-A) é outra mal elaborada forma alternativa de relação trabalhista,
pela qual os trabalhadores, embora com contrato em vigência, poderão ficar
semanas ou meses sem trabalho efetivo, aguardando um chamamento do empregador.
É uma espécie de “bico” formalizado, cujas consequências para a previdência
social os autores do projeto sequer tiveram o cuidado de analisar (e nem mesmo
adentramos aqui no impacto que a incerteza gerará para a vida social dos trabalhadores). Os períodos em que o empregado estiver
aguardando ser chamado, no qual em tese está formalmente vinculado à empresa
mas sem remuneração, contam ou não como tempo de serviço para fins de
aposentadoria? Mas como pode haver tempo
de contrato de trabalho formal sem contribuição? O projeto é inconsistente e incongruente
neste ponto.
Além disso, o PLC 38/2017,
incompreensivelmente, permite ainda formas de negociação individual
extrajudicial entre patrões e empregados a respeito de créditos devidos
(conforme arts. 477-B, 507-A, 507-B, 652, “f), o que tem como consequência
evidente um incentivo à informalização das relações de trabalho e respectiva
sonegação fiscal. Se o empregador sabe
de antemão que pode evadir-se da jurisdição trabalhista contenciosa, tenderá a
estabelecer relações informais e a pagar valores “por fora”, que poderão ser
negociados diretamente com o empregado, sem assistência sindical, ao término do
contrato. O empregado terá a ilusão de que é melhor receber o dinheiro “na mão”
de um acordo extrajudicial do que recolher sua parte para o fisco e para o
INSS. É o estado incentivando a sonegação de patrão e empregado. O impacto para
as contas da previdência será enorme.
Enfraquecimento
da negociação coletiva
Qualquer reforma que deseje com
sinceridade a prevalência do negociado sobre o legislado deveria ter como
premissa o fortalecimento das entidades sindicais e do seu poder de barganha.
Assim, seria de se supor que a extinção do financiamento compulsório das
entidades sindicais (o que é desejável e necessário) viesse acompanhado de uma
proposta de fim da unicidade e plena liberdade de organização sindical, o que
abriria um “mercado” de competição entre os sindicatos pela confiança do
trabalhador, situação que os dotaria de efetiva representatividade e
poder. Esta sim seria uma proposta
verdadeiramente “liberal” (no seu sentido clássico) para a reorganização da
ordem sindical. Sem o imposto sindical e
mantida a unicidade, tem-se o pior dos mundos para os trabalhadores: os
sindicatos ficam sem recursos e sem representatividade efetiva. As entidades
sindicais deixarão de ser “cartórios ricos” para se transformarem em “cartórios
pobres”.
Mas o grande perigo para a vida
sindical é a concepção que a reforma adota para regulamentar o dispositivo
constitucional sobre representação dos trabalhadores na empresa (Título IV-A do
projeto). Ela simplesmente afasta por
completo os sindicatos do processo de organização e eleição dos trabalhadores
para as comissões de empresa. Antes de
mais nada, é evidente que o dispositivo é flagrantemente inconstitucional, pois
o STF já decidiu que toda e qualquer comissão de trabalhadores organizada
dentro da empresa deve contar com participação da entidades sindicais (MC/ADI
1861). Porém, o mais grave é que a
proposta não assegura aos representantes dos trabalhadores plena estabilidade
no emprego para o exercício da representação de natureza sindical, pois
estabelece apenas uma garantia precária, permitindo que o empregador despeça o representante
dos trabalhadores por motivo “disciplinar, técnico, econômico ou financeiro”
(art. 510-D, parágrafo terceiro). Ou
seja, o projeto de reforma cria uma representação sindical “fantoche” e não lhe
confere qualquer poder efetivo de barganha, deslegitimando a representação
sindical oficial. Em outros termos,
fragiliza a representação sindical como um todo e diminui o poder de barganha
dos trabalhadores, o que é totalmente incoerente com o objetivo da reforma de
dar prevalência à negociação coletiva.
E não é só: o mais incongruente
de tudo é a possibilidade, em diversos pontos do projeto, especialmente os que
tratam de jornada de trabalho (alterações no art. 59 da CLT), de permitir que
os trabalhadores celebrem acordos individuais, sem assistência sindical, para o
afastamento das normas protetivas. Além disso, o PLC 38/2017 retira dos
sindicatos a prerrogativa de assistência na rescisão de empregados com mais de
um ano de contrato (revogação do parágrafo primeiro do art. 477) e inviabiliza
a atuação do sindicato nas demissões coletivas (art. 477-A).
Outra forma de esvaziamento da
representação sindical é a retirada da proteção dos acordos coletivos em
relação aos trabalhadores de nível superior que ganham o equivalente a mais do
que duas vezes o teto de benefícios da previdência (parágrafo único inserido no
art. 444 da CLT). Isto significa na prática que categorias inteiras como a dos
aeronautas e médicos poderão ser pressionados individualmente pelos patrões a
aceitar condições menos favoráveis do que as garantidas pelos sindicatos.
Profissionais que lidam com a vida e segurança das pessoas terão piores
condições de trabalho, o que é um risco para toda a sociedade.
Insegurança
Jurídica
Antes de mais nada, é preciso
observar que o projeto, do ponto de vista jurídico, é tecnicamente ruim e
débil. Parece ter sido produzido de afogadilho por assessores empresariais sem
conhecimento do Direito, para aproveitar o clima político congressual favorável
à contenção de direitos sociais. O
projeto possui lacunas, contradições e incoerências, como já apontado acima, e
contém inúmeras potenciais inconstitucionalidades, tanto no direito material,
como no direito processual – especialmente, neste caso, a violação frequente ao
princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Estes fatores, por si só, aumentarão a judicialização das relações do
trabalho, contrariando o que seria um dos propósitos específicos da reforma.
Mas o que de fato vai aumentar
sensivelmente a insegurança jurídica nas relações de trabalho é a tentativa de
impor uma camisa de força à uniformização da jurisprudência, pela quase
inviabilização do papel do TST em produzir súmulas (conforme alterações
propostas no art. 702, “f” da CLT). É
conhecida a crítica patronal de que a mais alta corte trabalhista estaria
“legislando” a pretexto de editar súmulas de sua jurisprudência – a despeito de
que a maior parte dos verbetes sumulares em direito material seja francamente
favorável ao empregador! É bem verdade que esta crítica por vezes é procedente,
pois não raro o TST promove “sessões” de revisão da sua jurisprudência que se
assemelham mais a um debate legislativo do que a uma reunião de julgamentos
consolidados.
Todavia, é uma ingenuidade muito
grande acreditar que a inibição do poder de editar súmulas (tamanha a rigidez
dos requisitos para sua aprovação) vai contribuir para o aumento da segurança
jurídica. Isto é uma ideia de quem não conhece minimamente o mundo do direito e
o funcionamento do sistema de justiça. Chega a ser bizarro o disposto no parágrafo
3o., inserido no art. 4o. da CLT, de que as súmulas “não poderão restringir
direitos legalmente previstos nem criar obrigações previstas em lei”. Qualquer estudante de direito informado sabe que é impossível estabelecer
aprioristicamente qual é o ponto a partir do qual a interpretação judicial
restringe ou cria um direito. E além do mais o dispositivo é completamente
inócuo, pois afinal quem vai interpretá-lo (dizendo se houve ou não inovação no
direito por atividade hermenêutica) é o próprio judiciário!
E se o poder do TST de
uniformizar a jurisprudência for reduzido exponencialmente, como propõe a
reforma, como se resolverão os conflitos de entendimento entre os tribunais
regionais e dentro do próprio TST?
Simplesmente não serão resolvidos e patrões e empregados encontrarão
jurisprudências divergentes para todos os gêneros e gostos, o que evidentemente
só aumentará a insegurança jurídica entre capital e trabalho. A solução
apresentada é completamente amadorística.
Retrocesso
social
Por estas razões, é difícil
aceitar o discurso oficial de que a proposta trabalhista vai “modernizar” a
legislação trabalhista, quando ela claramente cria “válvulas de escape” que
retiram as proteções mínimas do direito e da Justiça do Trabalho, aumentam a
informalidade, diminuem a base de contribuição da previdência e fragilizam o
poder de negociação coletiva dos sindicatos.
Não é possível acreditar que a mitigação das garantias legais ao
contrato de trabalho e do poder dos sindicatos é algo “moderno”, especialmente
em um país onde as relações capital-trabalho são tradicionalmente
autoritárias. Estas são questões sobre
as quais os Senadores da República deveriam refletir antes de votar
açodadamente um projeto tão mal elaborado que não resiste a qualquer análise
econômica e jurídica minimamente séria.
Cássio Casagrande - Doutor
em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e do
mestrado da Universidade Federal Fluminense - UFF. Especialista em Direito do
Trabalho.
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