O Brasil passa por um momento que
exige reflexão. É preciso ler as entrelinhas para nos preparar para o futuro.
Refletir sobre o Brasil que queremos ter. Para ajudar nessa reflexão a AMATRA
10 publicará artigos variados sobre o tema.
Hoje postamos as reflexões do
colega Ricardo Lourenço, Juiz do Trabalho da 10ª Região, em artigo escrito em
conjunto com o Procurador do Trabalho, Cristiano Paixão.
O artigo foi publicado hoje no
JOTA:
Não importa o quão intensa seja a
luta, o importante é não desistir jamais.
O
STF e o direito do trabalho do inimigo
Brasilia, DF. 05/07/11. Foto Noturna da Fachada. Supremo Tribunal Federal. Foto: Dorivan Marinho
|
Por Cristiano Paixão
Professor Adjunto da Faculdade de
Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e
Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios
pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em
Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Foi
Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e
Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e
Verdade da UnB (2012-2015).
Por Ricardo Lourenço Filho
Juiz do Trabalho do Tribunal
Regional do Trabalho da 10ª Região; Doutor e Mestre em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; Professor do Instituto
Brasiliense de Direito Público – IDP; Integrante dos grupos de pesquisa
“Trabalho, Constituição e Cidadania” e “Percursos, Narrativas e Fragmentos:
História do Direito e do Constitucionalismo” (CNPq/UnB).
A década de 1990 trouxe uma onda
conservadora ao direito penal. Isso começou com as políticas de “tolerância
zero” do ex-prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani, que se constituíam em mal
disfarçadas medidas de combate aos pobres e sem-teto. A Alemanha não poderia
ficar atrás no arsenal de medidas inovadoras no campo do retrocesso penal. Foi
quando Gunther Jakobs, professor e jurista, concebeu a teoria do direito penal
do inimigo. Segundo essa teoria, certos indivíduos representariam um perigo à
própria sobrevivência da sociedade, razão pela qual não mereceriam o mesmo
tratamento reservado a cidadãos que transgredissem normas penais. Por
representarem ameaça à sociedade como corpo social, esses indivíduos não seriam
beneficiários das garantias constitucionais e processuais aplicáveis a réus e
acusados em geral. Sobre eles deveria recair uma lógica de prevenção, de
antecipação das forças da ordem em relação a uma possível prática de crimes.
Em 2016, uma onda conservadora
atingiu o direito do trabalho no Brasil. O órgão responsável por essa
desconstrução das regras e princípios que regem o mundo do trabalho é o Supremo
Tribunal Federal. Em duas decisões recentes, o Supremo inovou. Ele criou a
figura do direito do trabalho do inimigo.
Ao julgar dois processos que
envolviam o direito de greve de empregados e servidores públicos, o Tribunal
acabou por impedir, em termos práticos, o exercício desse direito. Analisemos
as duas decisões.
A primeira delas é a decisão
monocrática proferida na Reclamação nº 24.597/SP. O caso envolvia greve
deflagrada pelos empregados públicos do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Diante da paralisação,
o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região já havia determinado a manutenção
de 70% dos trabalhadores e prestadores dos serviços de todos os setores do
Hospital, sob pena de multa diária. Com a Reclamação proposta pelo Hospital, o
STF estendeu a todos os empregados a determinação de continuidade dos serviços,
mantida a penalidade. Na prática, houve a proibição de exercício do direito de
greve.
É importante observar as
referências feitas na decisão. Uma delas, e talvez a mais importante, é à
decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 6.568/SP (DJe
de 25.9.2009). Naquela ocasião, submeteu-se ao STF a decisão sobre a
competência para julgar os conflitos decorrentes de greve deflagrada por
policiais civis do estado de São Paulo. Em uma argumentação lateral, alheia à
controvérsia, o Ministro Relator, Eros Grau, fazendo referência a São Tomás de
Aquino, expressou o entendimento de que “(…) tal qual é lícito matar a outrem
em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e
quais servidores públicos em benefício do bem comum”. Em outra passagem,
observou, então, que “a conservação do bem comum exige que certas categorias de
servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve. Defesa
dessa conservação e efetiva proteção de outros direitos igualmente
salvaguardados pela Constituição do Brasil”.
A segunda decisão, proferida pelo
Plenário do STF, por maioria de seis votos contra quatro, deliberou sobre a
questão do corte do ponto dos servidores públicos em greve (RE 693.456-RJ). De
forma expressa, o Supremo Tribunal decidiu que o administrador público não só
pode, mas tem o dever de cortar o ponto de servidores grevistas. O resultado do
julgamento, em processo com repercussão geral, foi o de que a regra será o
corte do ponto (e consequente suspensão do pagamento dos vencimentos) assim que
a greve se iniciar.
O que há em comum nas duas
decisões, além da completa incompreensão do significado do conceito de greve?
O fato de que, preventivamente,
são adotadas medidas para inviabilizar o exercício do direito de greve. Por um
lado, permitindo-se que determinadas categorias de servidores sejam privados,
por princípio, da possibilidade de entrar em greve. Por outro, ao impor um
desconto na remuneração que incidirá assim que o movimento paredista for
desencadeado.
É rigorosamente a mesma lógica
utilizada na teoria do direito penal do inimigo. Para evitar que o “mal” (a greve
no setor público, na visão do STF) se concretize, adotam-se medidas que
combatam, “na raiz”, qualquer movimento de paralisação, inviabilizando, em
termos práticos, o exercício do direito.
Chama a atenção a radicalidade
dos julgamentos do STF nesta matéria. Como se sabe – e já enunciado em recente
artigo publicado no Jota –, a Constituição de 1988 foi bastante clara e precisa
quanto à amplitude do exercício do direito de greve, consignando, em seu art.
9º, ser assegurado “o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir
sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele
defender”. No art. 37, inciso VII, por sua vez, o direito é estendido aos
servidores públicos sem restrição prévia do campo normativo, sendo prevista apenas
a edição de lei específica para fixar termos e limites do exercício do direito.
Não há espaço interpretativo para a proibição desse direito.
As decisões do STF privilegiam,
contudo, o poder repressivo da Administração Pública, quer pela exclusão de
determinadas categorias do direito de greve, quer pela imposição (ou “dever”)
do corte do ponto assim que o movimento for desencadeado. O que justifica essa
leitura, após 28 anos de vigência de uma Constituição democrática? Como
defender esse tipo de interpretação restritiva a partir de uma Constituição que
foi produto de uma mobilização social que foi marcada, historicamente, pela
realização de greves que visavam melhorias de condições de trabalho e, ao mesmo
tempo, a redemocratização do país?
Apenas o STF poderá conceder
essas explicações, em futuros casos e na publicação dos acórdãos dessas
decisões até aqui adotadas. Algo, contudo, já está claro. O trabalhador do
setor público que procurar, por meio da ação coletiva da greve, apresentar demandas
e lutar por seus direitos, passará a ser visto como inimigo do Estado e da
sociedade. A repressão do poder público poderá ser ativada de imediato. Quando
isso ocorreu ao longo da história do Brasil – em várias oportunidades –, o
Poder Judiciário era o único recurso disponível aos trabalhadores. Em algumas
circunstâncias, juízes e tribunais decidiram, de modo corajoso, proteger o
exercício desse direito, mesmo em tempos ditatoriais.
À época do regime militar, o
governo, junto ao Congresso Nacional, cuidou de editar normas que
inviabilizavam, na prática, o exercício do direito de greve. A Carta de 1967 e
a EC nº 1/1969 proibiam a greve aos servidores públicos e nas atividades
consideradas essenciais. No período democrático atual, o papel de estabelecer restrições
ao direito de greve foi assumido pelo Supremo Tribunal Federal.
De modo tremendamente irônico,
portanto, a lógica se inverteu. Na democracia, com uma Constituição que
assegurou o direito de greve, a repressão não será apenas tolerada pelo Poder Judiciário.
Ela acaba de ser ordenada a todo administrador público que se deparar com a
deflagração de uma greve. E tudo isso por força de duas decisões do Supremo
Tribunal Federal, órgão encarregado de zelar pela guarda da Constituição.
Muitos trabalhadores desafiaram
as limitações estabelecidas pela ditadura militar ao direito de greve.
Especialmente a partir de 1976, passaram a reescrever a história do movimento
sindical desafiando abertamente os órgãos de repressão ou simplesmente
ignorando as práticas de proibição e restrição ao exercício do direito. Com
isso, foram protagonistas da resistência ao arbítrio e da redemocratização.
Qual será atitude dos
trabalhadores no atual momento, em que a repressão tem origem numa decisão
plenária do órgão de cúpula do Judiciário? Conseguirão resistir? De que forma?
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