Artigo publicado no site: Estadão Política
Da esquerda para a direita: Helio Telho e Deltan Dallagnol. Fotos: Reprodução |
“Uma mentira repetida mil vezes
torna-se verdade”. A frase, atribuída a Joseph Goebbels, ministro da propaganda
nazista, explica o porquê de o senso comum acreditar que a aposentadoria
compulsória remunerada é a pena máxima prevista na lei para magistrados
vitalícios. Examinemos o que é verdade e o que é mentira nesse discurso.
Como todo e qualquer cidadão ou
servidor público, os juízes respondem pelos crimes que praticam, podendo ir
para a cadeia, ter seus bens confiscados para ressarcir e perder o cargo, sem
direito à aposentadoria. O mesmo vale para promotores e procuradores.
O juiz Nicolau dos Santos Neto,
conhecido como Juiz Lalau, foi condenado a mais de 26 anos de reclusão, em
regime fechado, pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção passiva, pelo
desvio de R$170 milhões das obras do fórum trabalhista de São Paulo. A sentença
ainda o condenou à perda do cargo, sem direito à aposentadoria. O ex-juiz
Lalau, que teve seus bens confiscados para ressarcir os prejuízos, cumpriu
parte da pena na penitenciária de Tremembé, outra parte em prisão domiciliar e,
por fim, foi beneficiado por indulto concedido pela presidente Dilma.
O juiz João Carlos da Rocha
Matos, por sua vez, foi condenado a 12 anos de prisão em regime fechado, por
formação de quadrilha, denunciação caluniosa e abuso de autoridade, dos quais
cumpriu quase 8 anos na cadeia. Depois, foi novamente sentenciado a mais 17
anos de prisão, também em regime fechado, pelos crimes de lavagem de dinheiro e
evasão de divisas. O ex-juiz Rocha Matos, que se encontra atualmente preso e
cumprindo pena, foi ainda condenado à perda do cargo, sem direito à
aposentadoria, e teve mais de R$77 milhões de reais em dinheiro apreendidos e
confiscados.
O problema é que são raros os
casos em que as penas da corrupção são aplicadas – apenas 3 a cada 100 desses
casos são punidos no Brasil. Os exemplos dos ex-juízes Rocha Matos e Nicolau
dos Santos Neto são oásis de Justiça no deserto de impunidade da corrupção.
A percepção geral de impunidade
que cerca Ministério Público e Judiciário é a mesma percepção quanto à
impunidade dos corruptos. Ela decorre da morosidade e das brechas da lei que
protegem os réus do colarinho branco. Os juízes e promotores que cometem crimes
ou faltas funcionais graves se beneficiam do mesmo sistema processual e
recursal caótico e irracional que favorece colarinhos brancos em geral (como
foi o caso do procurador de Justiça e ex-senador Demóstenes Torres), o qual
convida a defesa a plantar nulidades, adubar com chicana e colher impunidade.
A solução para esse problema é
clara. As dez medidas contra a corrupção, rejeitadas pela Câmara dos Deputados
nesta semana, oferecem soluções para esse problema, porque propõem tornar mais
célere e efetivo o processo de punição. Acabam com os recursos protelatórios,
agilizam a solução dos processos, permitem a execução provisória da condenação,
reduzem os casos de cancelamento da pena pela prescrição, fecham as brechas
para a anulação de casos e facilitam a recuperação do dinheiro público roubado.
O pacote anticorrupção se aplica integralmente a juízes e promotores e endurece
as penas também para eles.
Além disso, acabar com o foro
privilegiado daria mais agilidade às punições de magistrados. Proposta com esse
objetivo foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado (PEC
10/2013) e conta com o nosso o apoio e o de todas as associações de magistrados
judiciais e do Ministério Público. Contudo, o Congresso resiste em acabar com
essa proteção dada também aos parlamentares que são investigados ou réus, inclusive
ao presidente do senado, Renan Calheiros.
A PEC 291/2013, que tramita na
Câmara e que já foi aprovada no Senado, propõe acabar com a pena disciplinar de
aposentadoria compulsória de magistrados e criar a ação civil de perda do cargo
(sem direito à remuneração). Aprová-la é outra medida importante e apoiamos que
isso aconteça. Não hesitamos em apoiar propostas que cortem a carne apodrecida
do corpo do Ministério Público e do Judiciário.
Existe ainda um substitutivo ao
projeto de lei de abuso de autoridade de Renan Calheiros, que um grupo de
senadores apresentou e que moderniza a lei de abuso de autoridade, pune a
carteirada, mas sem criar instrumentos de intimidação e de acovardamento da
Justiça. Apoiamos esse projeto.
Agora, o que vários congressistas
querem fazer é algo completamente diferente. Com o discurso falacioso de
solucionar esse problema, alguns parlamentares propuseram mudanças na Lei de
Abuso de Autoridade. O objetivo não é, na verdade, enquadrar juízes que abusam
de seu poder. O objetivo é retaliar as investigações, intimidar a Lava Jato,
cercear as grandes investigações e ferir de morte a atuação independente do
Judiciário e do Ministério Público.
Para manipular a opinião pública,
citam o caso do juiz que mandou prender a agente de trânsito que tentava
guinchar seu carro. Falam em punir a carteirada. Só que não. A ironia suprema é
que tanto o projeto de abuso de autoridade de Renan Calheiros, como a Lei da
Intimidação que a Câmara aprovou nesta semana, não punem essa atitude. Não
preveem tornar crime a carteirada.
Por outro lado, tais projetos
criam crimes com redação sujeita a ampla interpretação – como “proceder de modo
incompatível com a dignidade ou o decoro do cargo”- ou que amordaçam promotores
e juízes, proibindo-os de conceder entrevistas sobre processos, ou que ameaçam
punir juízes e promotores pela interpretação que fizerem da lei ou dos fatos
(crime de hermenêutica).
O objetivo, portanto, não é o de
coibir o abuso de autoridade, nem o de reduzir a sensação de impunidade. O que
querem é intimidar e acovardar o Sistema de Justiça do Brasil. Querem proteger
os parlamentares acusados de corrupção que correm risco de ser punidos,
fomentando a impunidade, a insegurança, e com isso fornecer blindagem eficiente
para corruptos e criminosos em geral. O projeto de abuso de Renan e da Câmara,
como dizem os ingleses, “throws the baby out with the bath water” (joga fora o
bebê com a água do banho).
O que a Câmara fez na última
semana foi aproveitar que os brasileiros dormiam e choravam a tragédia da
Chapecoense para, na calada da noite, trucidar as dez medidas contra a
corrupção e aprovar a Lei da Intimidação.
Modernizar a lei de abuso de
autoridade é uma necessidade. Criar crimes que acovardem o sistema de Justiça é
um retrocesso civilizatório. A Lava Jato não é do Ministério Público ou do
Judiciário e não temos poderes para defendê-la contra maiorias raivosas no
Congresso Nacional. Está nas mãos da sociedade escolher o destino que quer para
nosso país.
*Por Helio Telho e Deltan
Dallagnol, procuradores da República
Artigo publicado no site: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/abuso-de-autoridade-e-pena-de-aposentadoria-de-magistrados-mitos-e-verdades/
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