Desenho de João Marcus Erre Felix |
Os três mal amados
"O amor comeu meu nome, minha
identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha
genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e
comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços,
minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida
de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor
comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos...
O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de
tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino
esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na
rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com
os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de
automóvel...
O amor comeu até os dias ainda não anunciados
nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as
linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande
poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta
da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu
dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de
cabeça, meu medo da morte."
João Cabral de Melo Neto
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