Artigo do Presidente da ANAMATRA, Germano Siqueira
Publicado no JOTA:
O descompromisso da Lei 8.666/93 com a dignidade
humana
Germano
Silveira de Siqueira
Ainda
está no centro dos debates, com grande repercussão no meio jurídico e na vida
cotidiana de milhares de trabalhadores, a opção legislativa encartada na Lei
8.666/93, mais especificamente em seu artigo 71, que estabelece com especial
destaque em seus parágrafos primeiro e segundo o seguinte:
“Art. 71
(..) §
1o A INADIMPLÊNCIA do contratado, COM
REFERÊNCIA AOS ENCARGOS TRABALHISTAS(..)NÃO TRANSFERE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA a
RESPONSABILIDADE POR SEU PAGAMENTO (..)”.
“§ 2o A ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA RESPONDE SOLIDARIAMENTE com o contratado PELOS ENCARGOS PREVIDENCIÁRIOS
resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de
24 de julho de 1991”.
O que
temos diante desse quadro de escolhas legislativas? Sem dúvidas, um grave
ferimento aos direitos humanos e aos compromissos democráticos que serviram de
base à repactuação do Estado brasileiro em 1988, como se verá adiante.
É
importante assinalar previamente que, no âmbito das contratações com o poder
público, notadamente envolvendo as intermediadoras de mão de obra, há uma
grande quantidade de empresas inidôneas, que são mal escolhidas e mal
contratadas em processos licitatórios às vezes formalizados apenas para inglês
ver, que, ao término das avenças, ou antes, já deixam pelo caminho dívidas
trabalhistas, previdenciárias e fiscais. Um processo lamentável, que produz
quadro fático desolador, resultante da má gestão desses contratos pelo poder
público, incapaz de ser explicado ou solucionado por meras formalidades
jurídicas, dando azo a que se tenha hoje que reconhecer que 25% dos maiores
devedores trabalhistas são empresas que lidam com terceirização.
E é
justamente por se saber dessa realidade, a produzir milhares de ações em
trâmite na Justiça do Trabalho há décadas que se pode afirmar, sem dúvida
alguma, ter o Congresso Nacional trilhado o pior caminho ao desenhar o texto do
art.71 na Lei 8.666/93.
Em
verdade, a norma em questão, mais precisamente em seu § 1º, desprezou
completamente a tutela aos direitos sociais e ao bem jurídico “trabalho” , ao
mesmo tempo em que introduziu naquele texto, em seu parágrafo segundo, algo pouco referido, que é uma indevida preferência que resulta do total descuido com
o princípio da moralidade administrativa, a par de incidir em inexplicável
contradição com disposto no parágrafo anterior.
Veja-se
que a solução do parágrafo 2º impôs ao poder público socorrer as empresas
sabidamente indignas de contratar com a União, estados e municípios, passando
para a Fazenda Pública a conta resultante de suas dívidas previdenciárias. Para
tanto, a lei autorizou o manuseio da técnica da responsabilidade solidária,
empregada para dar vazão, no caso, aos piores expedientes do patrimonialismo
que não raro animam os corredores invisíveis da política nacional para
confundir interesses particulares com o patrimônio público.
A escolha
política encartada no § 2º, por si só, deveria causar constrangimento, uma vez
que premia, como se sabe, o mau pagador da Previdência, aquele que, no mais das
vezes, nos processos licitatórios de terceirização, ao término dos contratos ,
não só descumpre esse dever legal (e termina socorrido ) como deixa de satisfazer
obrigações trabalhistas.
Mas
quanto a esses, o que ocorre? Dessa outra perspectiva, sem nenhuma coerência,
pelo disposto no § 1º do art.71 o Parlamento reservou aos credores da mesma
sequela uma solução completamente diversa e absolutamente injusta.
Recapitulando,
em transcrição livre o parágrafo 1º do art.71 estabelece:
a
inadimplência do contratado, com referência aos encargos (sic) trabalhistas não
transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento.
Mesmo
ciente do panorama caótico e de descuido que predomina no ambiente da
terceirização no serviço público brasileiro ou nas contratações no ambiente de
negócios privados (que a modelagem de projetos que se pretende agora aprovar
não vai corrigir) , o legislador fixou, sem nenhum receio, a ideia da total
irresponsabilidade jurídica do poder público. Tal conduta produz como efeito
prático, à luz da literalidade da lei, a total inefetividade prática de
condenações judiciais quanto a créditos trabalhistas (no caso de procedência de
pedidos), impondo como resultado concreto, para grande número de trabalhadores,
a frustração de direitos básicos de subsistência, como salários e parcelas
alimentares da idêntica natureza.
Essa
conduta legiferante fere de morte e contradiz a noção mais básica que se pode
ter em relação à dignidade de qualquer indivíduo , devidamente assentada em
compromissos das nações democráticas com os Direitos Humanos, além de desestruturar a própria higidez do contrato social em que
se assenta o convite à sociedade brasileira para um convívio igualitário e
pacífico, já que cumpre à lei o papel importante de não desacreditar o projeto
político e democrático de uma nação, consubstanciado em sua Carta Maior.
A esse
propósito, a Constituição Federal, que comanda e inspira a ordem jurídica, é
clara ao apontar em diversas de suas passagens a incontroversa prevalência do
valor social do trabalho, sem deixar de valorizar a livre iniciativa. Veja-se:
Art. 1º A
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, CONSTITUI-SE em Estado Democrático de Direito
E TEM COMO FUNDAMENTOS: (…)II – A CIDADANIA;
III – A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA;
IV – OS VALORES SOCIAIS DO TRABALHO E DA LIVRE INICIATIVA; (..)” Art. 3º
CONSTITUEM OBJETIVOS FUNDAMENTAIS da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, JUSTA E
SOLIDÁRIA; (..)III – ERRADICAR A POBREZA e a marginalização e REDUZIR AS
DESIGUALDADES SOCIAIS e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e QUAISQUER OUTRAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO”.
Art. 7º
São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social: I – relação de emprego protegida contra
despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que
preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; (..) X – proteção do salário na forma da lei,
constituindo crime sua retenção dolosa;
Art. 170.
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar A TODOS EXISTÊNCIA DIGNA, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios: (..) VII – REDUÇÃO DAS
DESIGUALDADES REGIONAIS E SOCIAIS; VIII – BUSCA DO PLENO EMPREGO;(..)”
Como se
vê, o pacto político nacional que renovou os compromissos da República
Federativa do Brasil está principalmente assentado nas ideias de cidadania,
dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa;
pluralismo político, defesa de uma sociedade livre, justa e solidária;
erradicação da pobreza e da marginalização; bem como a redução das
desigualdades sociais e regionais, com eliminação de todas as formas de
preconceito e discriminação.
Nesse
sentido, ou seja, nas situações em que o Estado acaba contrariando essas
premissas em algum de seus atos legislativos, como no caso da Lei 8.666
(art.71), a advertência de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (“Se Deus Fosse um
Ativista dos Direitos Humanos”) merece ser lida com atenção, por ser
apropriada. Diz ele:
“ O
contrato social, QUE FOI CONCEBIDO COMO RAIZ FUNDACIONAL da modernidade
ocidental , está a transformar-se [apenas] numa opção entre muitas outras.
Assim deve ser lido o movimento neoliberal de recuo em relação ao contrato
social e em direção ao contratualismo individualista e possessivo”.
E
prossegue:
“Grupos
sociais cada vez mais vastos são expulsos do contrato social (..) ou que a ele
sequer têm acesso tornam-se populações descartáveis. Sem direitos mínimos de
cidadania são, de fato, LANÇADOS NUM NOVO ESTADO DE NATUREZA, A QUE CHAMO
FASCISMO SOCIAL”.
E conclui
nesse ponto:
“No caso
da globalização neoliberal (..) a erosão do contrato social como raiz torna
possível o uso instrumental de todos os princípios que dele decorrem,
nomeadamente o primado do direito, da democracia e dos direitos humanos. Os sintomas
dessa instrumentalização são múltiplos [entre elas] : (..) níveis extremos de
desigualdade social, à luz dos quais a igualdade formal perante a lei se
transforma numa piada cruel; erosão dos
direitos sociais e econômicos e a emergência de uma sociedade incivil ou do
fascismo social que a acompanha; [além de] criminalizar o protesto social e
erodir os direitos civis e políticos ao ponto de a cidadania se tornar
indistinguível da sujeição”.
Sob essa
ótica, o descompromisso da Lei 8.666/93 com a dignidade humana e com o pacto
político constitucional tem realmente o efeito de excluir um grande número de
trabalhadores do contrato social firmado em 1988, até mesmo tornando muitos
deles descartáveis, sem direitos mínimos de cidadania, lançados, à própria
sorte, em um novo – e mais cruel-, estado de natureza.
Em
consequência, a irresponsabilidade do Estado, moldada pela questionada
disciplina legal, aponta para a violação de direitos humanos desses
trabalhadores, no que diz respeito à desproteção pelo pagamento de dívidas
trabalhistas decorrentes de terceirização na relação triangular entre
prestadores e tomadores estatais de serviços.
E é
induvidoso que seja assim, inclusive à luz do que preceitua o art.23º da
Declaração Universal de Direitos Humanos:
“ 1.Toda
a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições
equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2.
Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho
igual. 3.Quem trabalha tem direito a uma
remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma
existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por
todos os outros meios de proteção social”.
O direito
à uma remuneração satisfatória que permita a subsistência dos trabalhador e de
sua família “conforme a dignidade humana”, inclusive por todos os outros meios de proteção social,
notadamente de ser ressarcido por ação do Estado quando seus direitos básicos
são violados, não pode ser obstruído, muito menos por lei e menos ainda sem
justificativa plausível e racional.
Afinal, como pondera KONRAD HESSE (ELEMENTOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL
DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA – ED. SERGIO ANTONIO FABRIS):
“A
limitação de direitos fundamentais deve (..) ser adequada para produzir a
proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. Ela deve ser
necessária para isso, o que não é o caso (..) . Ela deve, finalmente, ser
proporcional em sentido restrito, isto é, guardar relação adequada com o peso e
o significado do direito fundamental.”
A norma
do § 1º do art. 71 nem protege adequadamente o bem jurídico trabalho ou o
interesse público, nem cria mecanismos proporcionais e hipóteses de relativizar
direito fundamental que, de regra, deve preservar. Pura e simplesmente
radicaliza a solução negativa para os trabalhadores e abre os cofres do Tesouro
para devedor previdenciário na mesma relação.
Em sendo
assim, sabendo-se de antemão, pela situação fática descrita, que o empregador
direto ou quem o contrata não consegue promover os acertos rescisórios e demais
pendências com os trabalhadores, que são levados para caminhos de execuções
tormentosas perante a Justiça, a solução legal (§1 do art.71) significa jogar
os trabalhadores ao inquestionável desamparo, em clara violação ao art.23 da
Declaração Universal de Direitos Humanos, já citado.
DANIEL
SARMENTO (Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição), sobre a
questão dos direitos sociais na perspectiva dos direitos humanos acentua:
“As
Constituições do México (1917) e de Weimar (1919) trazem em seu bojo novos
direitos que demandam uma contundente ação estatal para sua implementação
concreta, a rigor destinados a trazer consideráveis melhorias nas condições
materiais de vida da população em geral, notadamente da classe trabalhadora.
Fala-se em direito à saúde, à moradia, à alimentação, à educação, à previdência
etc. Surge um novíssimo ramo do Direito, voltado a compensar, no plano
jurídico, o natural desequilíbrio travado, no plano fático, entre o capital e o
trabalho. O Direito do Trabalho, assim, emerge como um valioso instrumental
vocacionado a agregar valores éticos ao capitalismo, humanizando, dessa forma,
as até então tormentosas relações jus laborais. No cenário jurídico em geral,
granjeia destaque a gestação de normas de ordem pública destinadas a limitar a
autonomia de vontade das partes em prol dos interesses da coletividade.”
Não de
outro modo analisa THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI ( PRINCÍPIOS GERAIS DE
DIREITO PÚBLICO. 2ª Ed) ao
dizer que:
“o
direito ao trabalho, à subsistência, ao teto, constituem reivindicações
admitidas por todas as correntes políticas, diante das exigências
reiteradamente feitas pelas classes menos favorecidas no sentido de um maior
nivelamento das condições econômicas, ou, pelo menos, uma disciplina pelo
Estado das atividades privadas, a fim de evitar a supremacia demasiadamente
absorvente dos interesses economicamente mais fortes”.
Para
AMARTYA SEN, na obra intitulada (A IDEIA DE JUSTIÇA), no tópico “Direitos
Humanos e imperativos globais”:
As
proclamações de direitos humanos (..) são declarações éticas realmente fortes
sobre o que deve ser feito. Elas exigem que se reconheçam determinados
imperativos e indicam que é preciso fazer alguma coisa para concretizar essas
liberdades reconhecidas e identificadas por meio desses direitos”.
De forma
induvidosa, portanto, é preciso pensar a efetividade da superação ou
minimização das brutais desigualdades como dever Estado e, nesse sentido,
entender que a inclusão do art.71 e seus parágrafos na ordem jurídica afeta
direitos humanos de milhares e milhares de brasileiros, ferindo também o pacto
republicano consagrado em 1988.
É
urgente, pois, a necessidade de enfrentar essa questão, inclusive no âmbito
legislativo, para excluir do ordenamento jurídico norma incoerente com os
expressos compromissos da República Federativa do Brasil, assim como para
eliminar a esdrúxula contradição que é obrigar o poder público a pagar dívidas
previdenciárias de empresas muitas delas falidas, no mesmo instante em que
desamparam aqueles que honestamente lhes prestaram serviços.
E,
finalmente, que haja reflexão sobre o sentido, finalidade e o papel da
instituições na vida real dos brasileiros, para considerar a importância e a
gravidade de decisões políticas que podem afetar a vida de milhares de
trabalhadores.
Germano Silveira de Siqueira -
presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho -
ANAMATRA
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