Reforma Trabalhista: conveniência,
legitimidade e oportunidade
Por
Rodrigo Trindade de Souza
Presidente
da AMATRA IV (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região)
Há
tecnologias que, tão rápido como se instalam, desaparecem. Assim foi com o Orkut,
o aparelho de fax e até o telex. Nunca tive, nem aprendi a usar nenhum deles e
fico extremamente feliz que tenham trilhado o sereno caminho dos dinossauros. Com
o twitter nutro incompatibilidade semelhante: não possuo, não sei usar e se for
extinto não me fará qualquer falta. Mas sei que o twitter tem uma tal de nuvem
indicativa das expressões mais comentadas. “Reforma Trabalhista” vem sendo uma
dessas.
Até dá a
impressão de ser algo novo, mas é como o feijão de sexta-feira, vem requentado
de longe. Nossa CLT foi publicada em 1º de maio de 1943 e não é exagero dizer
que, no dia seguinte, já devem ter se iniciado maquinações reformistas. Faz
parte do jogo, quase sempre “pegado”, entre capital e trabalho.
“Reforma” costuma
dar impressão de ser algo bom, mas precisamos ser sinceros em nossas
definições. Pelo menos desde os anos 90, “Reforma Trabalhista” é expressão de
falsa neutralidade para qualquer projeto político que envolva retirada de
direitos trabalhistas. Simples, mas é isso. Especialmente envolvem diminuição
de salários, ampliação de jornadas e toda sorte de restrição de benefícios e
condições de serviço saudáveis. Nos últimos anos, teve os upgrades da ampliação de terceirização de serviços e facilitação da
substituição do trabalho-emprego por contratos de atividade (prestadores de
serviços, cooperativados, estagiários, etc).
Está na hora
de amplamente reformar o mundo nacional do trabalho?
Ronald
Dworkin, um dos mais festejados filósofos do Direito do final do século XX e
início do presente, dizia que a história das nações passa por seus “momentos
constitucionais”. São formados não apenas pelas facilmente identificáveis promulgações
das Cartas Políticas, mas também pelas (raras) ocasiões em que a comunidade é
chamada para debater e redefinir suas mais importantes opções de convivência.
Reformas trabalhistas, com grandes alterações no modo de organização do mercado
laboral, já foram experimentadas globo afora. Nasceram a partir de grandes
pactos nacionais, especialmente com governos de coalizão, com consenso, harmonia
e acomodação de forças. A partir dessa excepcional legitimidade, e com ampla
participação dos diversos setores envolvidos, puderam ser redefinidas organizações
básicas da economia, da legislação social e da convivência entre capital e
trabalho.
Não é preciso
ter Doutorado em Ciência Política para saber que estamos anos-luz de um
governo de consenso nacional. Sem qualquer juízo valorativo, é fácil captar a
fragilidade de um governo federal que bamboleia em pulverizada sustentação
parlamentar, executa projeto controvertido e não
debatido. Além disso, a Reforma Trabalhista foi gestada e apresentada sem nem
mesmo consulta a organizações históricas de trabalhadores, à academia ou à Magistratura
e Ministério Público do Trabalho. E não se diga que o pitoresco e pronto apoio
do presidente do Tribunal Superior do Trabalho seja indicativo de alguma
virtude. Tão rápido como o Ministro empenhou admiração ao projeto, seus colegas
e organizações associativas de juízes, procuradores e fiscais do trabalho se
prontificaram a esclarecer “ele não fala por nós”.
Fica
complicado – para falar o mínimo – afirmar que esse atual cenário fragilizado possa
ser adequado fazer algo tão dramático e duradouro na vida de um país.
Além de
oportunidade/legitimidade, a Reforma Trabalhista deve ser julgada a partir da
análise de momento. Que atire a primeira chave de roda quem nunca deixou de
jantar fora para pagar o carnê do carro. Todos já vivemos algo assim em nossas
vidas: para fazer frente a importantes demandas de orçamento doméstico, optamos
por cortar despesas que julgamos menos urgentes.
Na vida
nacional também há momentos em que todos (ou número considerável de pessoas)
são chamados a enfrentar maior esforço, sempre ao benefício da coletividade. Por
maior que seja a necessidade, é claro que ninguém gosta muito de cortar na
própria carne, mas aceitamos – mais ou menos contrariados – porque conhecemos e
esperamos o bem maior.
Pois se em
época de “vacas gordas” já é difícil operar sacrifícios, imagine durante crise
econômica grave, como a que enfrentamos? Informes recentes dão conta que a economia
nacional encolheu pelo segundo ano consecutivo, caindo 3,6% em 2016 e gerando
retração de 7,2% do PIB no biênio. Está confirmado que vivemos a pior recessão
desde 1930.
Para quem se
alimenta a partir do salário e, portanto, mais sofre com desemprego e redução
de renda, é complicado explicar que deva ser exatamente o mais prejudicado com amputações
do que lhe sustenta. Se não há explicação que minimamente convença, o risco de
cisão nos laços sociais são perigosamente grandes e revoluções violentas
costumam ser algo que devemos evitar.
O discurso
destrutivo é fácil, sedutor e cada vez mais se entranha no imaginário. Delírios
e fantasias, todos temos, mas o problema está quando eles passam a confundir a
realidade. Foi Sigmund
Freud quem escarafunchou cabeças, estudou sério e sistematizou as repetições de
comportamentos de seus pacientes. Com a humildade dos mestres, mais tarde, ele
resolveu rever o conceito amplo de fantasia. Isso porque, nas primeiras
análises, a pegada era mais sexual. Em 1897, o mestre de Viena passou a chamar
de “fantasia” toda a vida imaginária, os meios pelos quais vemos nossas
próprias origens. Passou então a denominar “fantasia originária”.
Reforma
Trabalhista tem tudo a ver com fantasias e fetiches. Principalmente
nos motivos afirmados - com maiores ou menores volumes de voz - para rever o modo pelo qual
organizamos nosso mundo do trabalho nas últimas décadas. Três grandes
justificativas são extraídas:
1º) A
legislação trabalhista é velha.
2º) A lei é
protecionista e, portanto, gera desemprego e atravanca crescimento econômico.
3º) Tudo isso
gera excesso de processos judiciais.
Eis o primeiro
mantra: “o Direito do Trabalho Brasileiro é ultrapassado e precisamos
modernizá-lo”. Que modernizar costuma ser bacana, não há dúvidas. Que a CLT tem
mais de 70 anos, calendário nenhum nega. Mas daí passar à conclusão de que
precisa esculhambar tudo são outros mil e quinhentos.
Momento das
revelações: a CLT de 1943 não existe mais. Dos 510 artigos de Direito
Individual do Trabalho, apenas 75 mantiveram-se originais. Isso significa
miseráveis 15% da Consolidação e correspondem, essencialmente, a dispositivos
conceituais e de baixa efetividade prática.
E a caducidade
da velha senhora não ocorreu apenas pelas cirurgias substitutivas. Sim, ela foi
trocada por moças mais jovens. Primeiro, a partir dos anos 70, quando surgiram
diversas leis, principalmente para regular novas formas de contratação: rurais,
farmacêuticos, jornalistas, etc. Segundo, e já no final dos anos 80, com a
Constituição. Nossa Carta Política é modelo internacional pela importância que
dá ao Direito do Trabalho e diversos temas são lá diretamente tratados. E falo
de itens básicos e práticos, como valor de horas extras, direito a férias e
salário mínimo.
Por fim, a
atualização constante do Direito do Trabalho não ocorre apenas com modificações
legislativas. Direito é muito mais que lei e nem sistema operacional da Apple
tem upgrades mais constantes que o
mundo do trabalho. Vivemos em sociedade que se pauta pelo trabalho humano e não
nos cansamos de nos reinventar. Com a dificuldade de acompanhamento legislativo
para regular tantas alterações, a jurisprudência precisa oferecer respostas
contemporâneas. São mais mil (sim, eu disse mil!) verbetes sumulares, em temas
de direito material e processual do trabalho. Aí entram súmulas, orientações
jurisprudenciais, precedentes normativos etc. E, diga-se de passagem, o milhar
vem apenas pelo TST e STF, porque cada Tribunal Regional do Trabalho também
empilha suas dezenas de súmulas.
Então, amigos,
dizer que a lei trabalhista é velha é que é piada. E das velhas.
A segunda
fantasia – e que, na minha opinião, alcança o status de fetiche – vem com a
afirmação de que a proteção da legislação trabalhista gera desemprego e impede
o crescimento. Líder empresarial famoso recentemente disse que “precisamos
modernizar para reduzir custos e alavancar a produção”.
Em momentos de
crise temos de afirmar o óbvio. Direito do Trabalho e Justiça do Trabalho são
instrumentos de civilização, atuam no equilíbrio das relações sociais e impedem
que conflitos entre empregados e empregadores se resolvam em golpes de tacapes.
Isso sem falar na importância que têm para manter o mercado equilibrado pela
distribuição de renda e suprido por seres capazes de consumir o que fabricam.
Afinal, enquanto não inventarem exportações para outros planetas, somos nós,
humanos, quem temos de ter condições para comprar o que produzimos.
Com
sinceridade, não canso de me espantar com um aparente contra-senso. De um lado,
há os litros de tinta, saliva e toques de teclado gastos na defesa da restrição
de atuação da Justiça do Trabalho e excesso de proteção. De outro, silêncio,
tela preta e reduzidas notas de rodapé sobre medidas efetivas para fazer
cumprir o Direito e reprimir os delinquentes.
A sugestão de
que a proteção trabalhista possa barrar crescimento é algo que não para em pé.
O custo do trabalho no Brasil já é tremendamente baixo, cerca de dez vezes menor
que na Austrália. Por aqui, o salário mínimo/hora é de cerca de R$ 4,
“competindo” com os EUA (R$ 23), Alemanha (R$ 25), Espanha (R$ 17) e Portugal
(R$ 15). Para comparar com vizinhos, no Chile é R$ 6.
A Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) têm estudos que demonstram não existir correspondência entre
baixa proteção trabalhista e geração de empregos. Ao contrário, é a tutela do
trabalho que assegura melhor distribuição de renda e permite que a economia se
mantenha aquecida.
Até a China
parece estar se dando conta da importância da elevação do salário. Reportagem
recente do Financial Times mostra que o país asiático vem sistematicamente
aumentando valor de salários na indústria e que isso está resultando em ganhos
de produtividade a ampliação do mercado interno.
Estudos
semelhantes mostram que ampliação de jornada de trabalho – outra fantasia
desenvolvimentista divorciada de qualquer ciência – é péssima para todo mundo.
Além de reduzir postos de trabalho, faz crescer número de acidentes e ampliar
faltas ao serviço. Tudo isso onera a sociedade, especialmente com pagamento de
benefícios previdenciários. A Suécia é país que pode servir de bom exemplo:
após reduzir sua jornada semanal de trabalho, desmentiu todo o terrorismo de
economistas apressados e viu a produtividade crescer, acompanhada de redução de
faltas e de doenças relacionas ao serviço. Nada mal.
A terceira, e
última, fantasia tem a ver com o excesso de processos trabalhistas. A Justiça
do Trabalho conta com cerca de 3 milhões de ações e o número realmente é
assustador. Não há qualquer outro país que tenha montante pelo menos parecido.
Aqui,
precisamos reduzir o zoom e ampliar o acesso à paisagem. Excesso de ações está
longe de ser karma exclusivo das
relações trabalhistas. Alcançando visão de todo o sistema nacional de justiça,
percebemos que a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal têm praticamente o
mesmo percentual, entre o total de processos no país. Cada uma conta com cerca
de 14%, mas lembremos que os Federais possuem estrutura menor e as demandas
praticamente se dirigem a um único réu, a União.
A campeã
mesmo, é a Justiça Estadual, com seus 70% de novos casos, envolvendo questões
como Direito do Consumidor e punição da criminalidade. Se são essas as questões
que realmente batem recordes mundiais de litígios, devemos pensar em não mais
limitar a voracidade dos conglomerados monopolistas? Ou fechar os olhos para o
crime? Melhor não dar ideia.
O que esses
números mostram é que no Brasil pode haver escassez de quase tudo, menos de
ações judiciais de todos os tipos. Sejamos sinceros: somos um país de
descumpridores e a propensão é fazer de conta que leis não existem até que
alguém de toga mande cumprir, sob pena de pesar no bolso. Há um modelo de
“passar a mão na cabeça” de quem descumpre rotineiramente leis, contratos e
sentenças. Essa concepção passa por ver com bizarra naturalidade operações
jurídicas para esconder patrimônio, atrasar pagamentos e recorrer ao infinito.
O cumprimento voluntário da obrigação parece ser o inusitado. Sistemas
jurídicos muito mais eficazes fixam consequências graves a descumpridores e
devedores, com possibilidade de interdição de acesso a vários instrumentos de
cidadania e de sobrevivência das atividades empresariais.
Enfim, há um
problema cultural e matar o paciente não parece ser a melhor forma de acabar
com a doença.
Aqui, também
entra uma subfantasia, a da “indústria da reclamatória trabalhista”. Todos já
ouvimos isso de gente mal-intencionada ou pessimamente informada. Parece partir
da suposição de regra em lides inventadas, aventuras jurídicas e teses
improváveis. Ninguém mais que juízes se revoltam com abusos no direito de
litigar e – sim – há excessos, com pedidos (sejamos elegantes) pitorescos. Pode
ser resultado do excesso de competição entre advogados, da necessidade de
aumentar a “lucratividade do processo” ou da quase ausência de mecanismos de
punição por exorbitâncias. Mas está longe de ser regra. Dados do Conselho
Superior da Justiça do Trabalho mostram que mais de 46% das ações trabalhistas
são para cobrar verbas rescisórias. Não tratam de construções temerárias, mas
de simples parcelas salariais de quem trabalhou o mês, ganhou um contracheque
em branco e a dica de “vai procurar os teus direitos”.
A
terceirização e a irresponsabilidade administrativa do próprio Estado são
grandes culpados do excesso de processos. Pesquisa da Associação dos
Magistrados Brasileiros mostrou que dos 10 maiores devedores (envolvendo todos
os setores do Judiciário), 6 fazem parte do Poder Público e 2 são empresas de
terceirização de serviços.
Outro estudo,
restrito a processos trabalhistas, mostra o mal que a terceirização produz. A
Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região produziu documento
de análise do uso predatório do Judiciário e identificou que dos 6 maiores
devedores da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, 4 são empresas
terceirizadas. E são essas que, em média, pagam salários 24% inferiores,
produzem o dobro da rotatividade e promovem 80% dos acidentes de trabalho.
Lamentavelmente, o que há de projetos legislativos sobre terceirização no
Congresso Nacional – pasmem – é de ampliação da prática.
Todo esse
discurso fantasioso a respeito da necessidade de Reforma Trabalhista é fácil e
sedutor. Não apenas porque envolve fetiches, mas em razão de vender ideia de
terra arrasada, de que o Direito do Trabalho é o instrumento do mal e que a
ausência de regras básicas possa fazer com que a convivência passe, em um passe
de mágica, a ser mais simples e tranquila.
Para temas
complexos não há soluções simples. Thomas Piketty, um dos mais importantes
economistas da atualidade, defende no bestseller
“O Capital no Século XXI” que a única chance de salvar o capitalismo é combater
a concentração de renda e melhor distribuir de forma mais inteligente os
recursos econômicos. O problema não são a CLT e a Justiça do Trabalho, mas
temas muito mais difíceis e necessários para enfrentamento: carga tributária,
falta de política industrial, deficiência de infraestrutura e histórico de
desonerações inconsequentes e sem contrapartidas.
Freud também
tratou de uma fantasia interessante, a pulsão de morte (todestrieb). No Brasil, com sua fortíssima má distribuição de
renda, o salário produz 55% da riqueza e achatá-lo é pisar nas chances de
crescimento de toda uma nação. Por mais fantasioso que seja, matar os problemas
do mercado de trabalho não é matar o trabalhador.
Direito do
Trabalho é instrumento de civilização, garantidor de equilíbrio das relações
sociais e assegurador do mercado de consumo. Podemos pensar em alternativas
menos demolidoras e bem mais efetivas.
Se não temos
consenso nacional para sangrar o trabalho, outros mundos são possíveis e não
estão distantes de chegar. Pensar seriamente em educação e formação, investir
em tecnologia e inovação, combater a sonegação e a corrupção, desonerar a
produção e a folha de salários. Tudo isso é alternativa possível e que, com um
pouquinho de esforço, pode até chegar na tal nuvem do twitter. Aí, está tudo
resolvido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário