terça-feira, 4 de abril de 2017

CUIDADO!!! SEUS DIREITOS VÃO SER RETIRADOS E NÃO O NÚMERO DE EMPREGOS NÃO AUMENTARÁ



Reforma trabalhista: negociado sobre legislado
  

Por Rodrigo Trindade
Presidente da AMATRA IV (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região)

No Livro XII da Odisséia, Homero conta uma das estórias mais interessantes da saga do retorno de Ulisses para Ítaca. Pronto a reencontrar seu reino, seu lar e, principalmente, sua amada Penélope, soube que o trajeto marítimo envolvia as proximidades da ilha rochosa de Capri, onde – diziam – habitavam sereias que, com seu canto sedutor, já tinham provocado diversos naufrágios. Para evitar o encantamento, a sacada de Ulisses foi tapar os ouvidos dos marinheiros com cera. Mas o herói não seguiu o mesmo caminho e preferiu que fosse amarrado ao mastro de Argos, seu navio. Homero conta que Ulisses, então, ouviu o canto de perdição, gritou, esperneou, mas só foi desatado quando passaram da ilha.
Daí surgiu o conselho de “não cair no canto da sereia”. Ulisses é o herói de verdade, sem superpoderes, sabe da própria fragilidade e é esse conhecimento que o faz mais forte.
Em uma sociedade democrática, espera-se que sindicatos tenham plena liberdade de negociar com empresas condições de trabalho. Mas há limites ao magnetismo da autocomposição. O comprometimento de Ulisses compara-se à opção do Direito do Trabalho em estabelecer que os instrumentos da negociação coletiva (acordos e convenções coletivas de trabalho) não podem criar condições piores que as previstas pelas leis. Sindicatos podem ouvir promessas sedutoras de regrar para pior, mas há elementos da vida que precisam se sobrepor ao canto.
No artigo anterior, tratamos da conveniência de fabricar uma ampla e precarizante reforma trabalhista, bem como os diversos fetiches que envolvem o projeto. Falar sobre limites da negociação coletiva também tem muito de fantasia.
Atualmente, a Constituição assegura prevalência do negociado sobre o legislado, mas apenas para elementos dos acordos e convenções coletivas que estabeleçam benefícios superiores ao fixado na lei. A isso damos os nomes de “progressividade” e “vedação de retrocesso social”. Uma das mais importantes propostas de Reforma Trabalhista do Governo Federal envolve o desamarrar do mastro, permitir que sindicatos e empresários fiquem “livres” para fixar condições de trabalho piores que as da lei. Em poucas palavras, que as relações de trabalho possam “regredir”, “retroceder”.
Não há dúvidas que o discurso é, potencialmente, sedutor. As partes da negociação coletiva são as que mais conhecem as próprias rotinas e demandas. São sindicatos e empresas quem melhor sabem dos detalhes de suas atividades, o que está sobrando e faltando e, portanto, poderiam abrir mão de algo considerado “supérfluo”.
Historicamente, o entendimento prevalente do Tribunal Superior do Trabalho vem sendo de limitação dos poderes negociais coletivos. O Ministro e excepcional doutrinador, Maurício Godinho Delgado, sintetiza dois critérios autorizadores para prevalência das normas coletivas:
a)           quando as normas coletivas implementam padrão setorial de direitos superior ao padrão da lei;
b)          quando essas mesmas normas transacionam parcelas trabalhistas de indisponibilidade apenas relativa.
Em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, por meio de voto do Min. Teori Zavaski (RE 895.759/PE), apresentou inovação, baseada em fundamentos de segurança jurídica e autonomia negocial. Em suma, estabeleceu que a prevalência do negociado sobre o legislado deve ser medida caso a caso – e, aparentemente sem muito cuidado, em qualquer caso.
Na opinião do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, a Reforma se destina a garantir efetiva segurança jurídica aos trabalhadores relativamente aos acordos coletivos, sem que dependam de interpretações inseguras da magistratura. A maior parte do mesmo Tribunal, – assim com as associações de juízes e promotores trabalhistas – tem concepção diferente. Acreditam que segurança jurídica deve ser um instrumento de justiça e que, portanto, precisa ser sopesada com prevalência de regras mínimas de dignidade do trabalho e garantia de livre concorrência. Em suma, que norma coletiva pontualmente precarizante já nasce insegura na perspectiva não apenas do Direito do Trabalho, como da própria Economia.
O projeto de Reforma Trabalhista tem problemas de premissas.
O fundamento de qualquer negociação é paridade de armas e isso vale para tudo na vida, principalmente complexas e importantes negociações sindicais. No capitalismo, poder de fogo é medido pelo dinheiro e não é segredo que trabalhadores têm menos que empresários.
É verdade que em períodos de pleno emprego, de crescimento da economia, esse poder de fogo tende a ficar um pouco menos desequilibrado. Se não há poder de negociar de igual para igual, pelo menos passa a ser possível extrair algum tipo de benefício. Mas em épocas de desemprego e recessão – sim, falo de hoje – autonomia negocial é pura e simplesmente o meio mais rápido de diminuir salário, aumentar jornada e esculhambar o meio ambiente de trabalho.
Há, ainda, uma segunda premissa equivocada: que sindicatos têm perfeita legitimidade para estabelecer as condições de trabalho que julgarem mais adequadas a seus representados – sejam as condições que forem. Talvez em um mundo ideal, mas não nesse universo.
Poderia listar diversos sindicatos de absoluta seriedade e que jamais permitiriam consciente prejuízo geral a seus representados. Mas, lamentavelmente, nosso ambiente sindical está anos-luz da perfeição e não são incomuns presidentes de sindicatos que jogam golfe com donos de empresas – e com os tacos que ganharam do chefe.
A questão é polêmica e delicada, mas precisamos ser sinceros na constatação de certa regularidade na má atuação corporativa. Há dois principais fatores: unicidade e imposto sindical.
A regra de único sindicato por categoria na base geográfica é um pedir por distorções e, assim como imposto sindical, é prática rejeitada até pela Organização Internacional do Trabalho. Atualmente, só é preciso registro administrativo para fazer um sindicato, sem qualquer tipo de contrapartida séria. Não é à toa que a maioria nunca entabulou negociação coletiva.
Apenas 17% dos 45 milhões de trabalhadores brasileiros são sindicalizados. Quer dizer que há poucos sindicatos? A regra nacional de sindicato único da categoria deveria significar número muito reduzido de agremiações. E assim seria se o brasileiro não fosse o povo mais criativo do planeta. Para driblar a unicidade, a “solução” tem sido investir em criatividade semântica: o conceito de categoria é inflado continuamente e chega ao requinte da existência de um sindicato da indústria de camisas para homem e roupas brancas. Não, não é brincadeira. Já são mais de 15 mil sindicatos no Brasil e cerca de 2 mil atrás de registro no Ministério do Trabalho. Sabe por que eles se reproduzem mais que Gremlins molhados?
Algumas pistas. É difícil explicar para estrangeiros, mas, por aqui, essas associações privadas são financiadas com parcela de natureza tributo, obrigatoriamente descontada na folha de salário, todo mês de março de cada ano. O imposto sindical cria “estímulo” que não devia existir e gerou cerca de R$ 3 bilhões, apenas em 2016. Estudos do Ministério Público do Trabalho apontam que no Brasil há cerca de 8,5 mil dirigentes sindicais que estão há mais de 10 anos no poder.
Na Europa Ocidental, onde vige a pluralidade sindical e a renda das instituições não depende de arrecadação coercitiva pelo Estado, o conceito de “sindicato mais representativo” promoveu fantástica redução do número de agremiações. Por lá, sindicato que não trabalha de verdade para seus representados tem vida curta, muito curta.
Repito: há sindicatos muito sérios, mas que têm de conviver com os que mantêm apenas existência formal, vivem da tunga de seus representados e atuam como simples braços de empresários. 
O resultado de toda essa distorção na representação sindical nacional é a formação de cenário perfeito para negociações espúrias de simples redução de direitos dos trabalhadores.
E sindicatos sérios não têm vida facilitada. Não é nem um pouco raro Justiça do Trabalho e Ministério Público do Trabalho depararem-se com atos empresariais atentatórios à livre atuação de dirigentes. Uma rápida pesquisa de jurisprudência vai indicar diversas ações e procedimentos administrativos que envolvem despedidas injustificadas de sindicalistas, assédio a grevistas e atravancamento de fiscalização de agentes das entidades.
Mas para entender os problemas da proposta de reforma não precisamos – nem devemos – ficar apenas dentro da sede do sindicato. Botar o pé no escritório comercial da empresa mostra como pode ser nociva a prevalência do negociado sobre legislado. A opção brasileira de ter um Direito do Trabalho federal (aplicado de modo uniforme por todo território nacional) serve a objetivos importantes da República: garantir os primados de redução de desigualdades regionais e de condições justas de concorrência.
Permissão de acordos coletivos restritivos de direitos legais pode gerar graves comprometimentos ao esperado equilíbrio de acesso ao mercado. Pela proposta, os pactos podem ser feitos por empresa e, se uma consegue precarizar o trabalho (e, por conseguinte, reduzir custos) e outra não, forma-se situação de concorrência desleal. Nesse cenário, os lucros de quem mais precariza são privativos, mas os custos ficam socializados.
Um dos piores efeitos do “liberou geral” dos acordos coletivos reside nos efeitos pretendidos por setores empresariais a respeito do tempo de trabalho.
Conseqüências perversas da ampliação ao infinito do tempo de serviço são vistas por todo o mundo. Nos primeiros dias de 2017, a notícia de suicídio de uma funcionária de agência de publicidade no Japão fez retomar o debate naquele país sobre mortes geradas por excesso de trabalho. Isso porque Matsuri Takahashi vinha acumulando número incrível de horas extras e relatava em redes sociais uma rotina de pressão dos chefes, privação de sono e crescente exaustão física. Lá, morte por excesso de trabalho é tão frequente que ganhou substantivo: karoshi.
No Brasil, não é necessário apelar à sofisticação dos suicídios para relacionar morte com excesso de serviço. O trabalho por aqui também mata – pelas tradicionais formas de adoecimentos e acidentes.
Muito se fala das causas dos excessos de acidentes do trabalho em nosso país, mas uma coisa é certa: não há fator mais determinante que os exageros de jornada, sejam diários ou de acúmulos durante o ano. Não é à toa que a maior parte dos infortúnios ocorre durante as horas extras.
Deveríamos esperar políticas públicas sérias para restrição de horas de trabalho, garantia de intervalos e preservação de férias. Mas o Projeto de Reforma Trabalhista vai na contramão. A idéia é que o art. 611-A da CLT passe a determinar que esses instrumentos estabeleçam condições inferiores às legais sobre treze itens e os relativos ao tempo de trabalho são os que causam maiores calafrios.
Horas extras
A regra vigente é de que temos limites diário e mensal de jornada. Por isso, todo trabalho realizado após a 8ª hora do dia ou 44ª hora semanal deve ser remunerado com adicional mínimo de 50%. A exceção está na compensação de jornada (a mais comum é trabalhar um pouco mais de segunda a sexta para folgar sábado e domingo).
A proposta do Governo Federal é que um acordo coletivo possa estabelecer “forma de cumprimento da jornada de trabalho”. Na prática, poderemos ter constantes jornadas superiores a oito horas, mantendo-se apenas limite de 220 horas mensais. Soma-se abertura regulatória para banco de horas.
Esse é o item mais catastrófico. Em retorno a patamares do início da Revolução Industrial, fabrica-se possibilidade de labor de 24 horas. Ou até mais, com estabelecimento de serviço contínuo que ultrapasse um dia inteiro. As possibilidades de mortes, exaustão e elevação de acidentes do trabalho são óbvias.
Ministério Público e Justiça do Trabalho há algum tempo deparam-se com indevidas tentativas de formalização de jornadas excessivas, como em colheitas e transporte rodoviário. Em vários processos e investigações, tem-se verificado como a prática é danosa à saúde e produz toda sorte de desgraça, incluindo mortes coletivas.

Parcelamento de férias
Atualmente, a lei determina que o parcelamento de férias só ocorre em casos excepcionais, máximo de dois períodos e um dos quais não inferior a dez dias corridos. O projeto prevê que a negociação coletiva permita até três períodos, desde que uma das frações não seja inferior a duas semanas ininterruptas.
Férias não são luxo, mas necessidade biológica de descanso e afastamento do cansativo mundo do trabalho. Para muitos profissionais envolvidos em rotinas estressantes (e hoje em dia quem não está?), a mente só sai mesmo do ambiente da empresa após uma semana de desligamento físico. Sem falar que períodos pequenos dificultam viagens e convivência familiar continuada. Por tudo isso, o fracionamento é tratado como excepcionalidade.
O projeto quebra o conceito de férias como período longo e ininterrupto de afastamento, direcionado a garantir saúde, bem-estar e tempo com a família. Seguindo uma lógica meramente economicista, férias passam a ser qualquer período em que a empresa se descobre com menor demanda produtiva.
Horas in itinere
O entendimento atual é que, se tratando de local de difícil acesso ou sem transporte público, o tempo de deslocamento deve entrar na jornada de trabalho.
A ideia do inciso IV é excluir essa contagem, passando o funcionário a suportar o ônus de seu empregador ter sede em local distante. Abre-se a possibilidade de abolição, pura e simples, de construção histórica e ponderada do Direito do Trabalho de horas in itinere.
Trabalho remoto
A lei vigente permite que o juiz possa reconhecer vínculo de emprego de trabalhador que realiza atividades fora da sede da empresa. Assegura também que, mesmo que esse tipo de trabalho se submeta a limites de jornada e, havendo excesso, haja pagamento de horas extras.
A permissão ampla, sem qualquer critério ou limite, de incluir trabalho remoto no rol de regramentos dos acordos coletivos escancara todo tipo de prejuízo ao trabalhador. Abre-se espaço para eliminar limites de jornada e pagamento de horas extras, pela simples imposição de rotinas de serviço que sejam humanamente inexequíveis nas padronizadas 8 horas diárias. Em tese, poderá até mesmo excluir funcionários remotos da relação de emprego, aumentando o rol de trabalhadores precarizados e superexplorados.
Registro de jornada
A CLT determina que toda empresa com mais de dez funcionários deve ter registro de jornada. Praticamente todas as questões econômicas relativas ao mundo do trabalho dependem de registros de horários, como folgas, férias, horas extras e assiduidade. Mesmo com regras legais rígidas, são bastante frequentes processos judiciais em que se discutem horas extras geradas por fraudes nos registros. 
A formalidade da anotação escrita é notável instrumento de segurança para o empregador, que se habilita a apresentar prova documental pré-constituída se demandado em juízo e, assim, consegue demonstrar regularidade de pagamentos.
O projeto de Reforma Trabalhista abandona a regra da CLT e joga a questão para definições amplas e irrestritas nas negociações coletivas. Em suma, abre-se brecha para abolir registro escrito de jornada e escancarar a falcatrua.
Fiscalização e magistratura trabalhista já vêm se deparando com ensaios, como adoção de ponto “por exceção” e todo tipo de ampliações de profissionais formalmente não submetidos a registro. As ideias que têm animado essas experiências costumam ser bem claras: jornadas extenuantes, inadimplemento de horas extras e toda sorte de embustes.
Intervalo de 30 minutos
Atualmente, quem trabalha mais de 6 horas, precisa ter intervalo mínimo de uma hora no meio na jornada. Não é kabala, numerologia ou sonhos premonitórios com dígitos, mas resultado de décadas de observação e estudo sobre trabalho humano, produtividade e necessidade biológica de descanso.
Pois o que se pretende com o inciso V é jogar pá de cal e amputar pela metade.
Para quem tem dia de serviço sem grandes rigores físicos – como é meu caso, em cadeira estofada e ambiente climatizado –, parece razoável. Mas, sem qualquer critério, definição de abrangência profissional ou benefício de contrapartida, pretende-se permitir intervalo de 30 minutos para qualquer trabalhador.
Achar que meia hora é suficiente para se alimentar, descansar e recompor energias é concepção de quem jamais teve ideia do que é passar o dia virando massa de cimento na enxada. Além de evidente submissão à exaustão física em muitas atividades, a medida eleva consideravelmente os riscos de acidentes graves.
Os históricos (antigos e recentes) de normatividade privada para temas trabalhistas com patamares previstos em lei mostram uma constante de resultados com graves prejuízos no mundo do trabalho.
Estudo recente revela que nosso país é o que tem maior acúmulo de horas extras no mundo: 76% dos brasileiros trabalham nove horas ou mais, entre uma vez por semana e todos os dias. A mesma pesquisa mostra que apenas US$ 294 bilhões são gerados por horas extras no Brasil, em comparação com US$ 1,9 trilhão nos EUA, US$ 679 bilhões na Alemanha e US$ 398 bilhões na França. Nesses países, as percentagens de trabalhadores que fazem horas extras estão, respectivamente, em 44%, 69% e 68%.
Os números esclarecem que no Brasil se trabalha muito e se ganha pouco com horas extras. Há dois motivos: valor baixo atribuído ao excesso de serviço e a prática de burla em registro e pagamento. Tudo leva a crer que a institucionalização de ampla abertura regulatória em acordos coletivos seguirá o caminho de aprofundamento de precarizações e fraudes.
Além das interferências nos pisos relativos a tempo de trabalho, o Projeto de Reforma franqueia efeitos inferiores aos legais nas matérias participação nos lucros, Programa de Seguro-Emprego, plano de cargos e salários, e remuneração por produtividade. Cada um desses tem imensurável potencial de precarização, achatamento salarial e toda sorte de experiência fraudatória.
Não temos a tecnologia japonesa, mas de burla à legislação trabalhista, disso nós entendemos. Especialmente quando envolve ampliações de tempo de trabalho, sem pagamentos coerentes. O próximo passo será traduzir karoshi. Falta pouco.
Mas tudo isso pode ser evitado se pensarmos como Ulisses. A opção das amarras também tem simbologia interessante: Argos é o veículo de toda a tripulação para um futuro de conforto e segurança e, ao ser atado ao poste, nosso herói mostra como acredita e integra-se voluntariamente ao instrumento. A opção civilizadora de garantir a lei como mínimo demonstra a vontade de seguir uma existência coletiva e permanente, sem retroceder.
Afinal, queiramos ou não, estamos todos no mesmo barco.


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